O poder da invisibilidade tem
permeado o imaginário humano desde tempos remotos. Os espíritos invisíveis ou
os super heróis dos desenhos animados dotados desse super poder, fascinaram e
ainda fascinam muita gente das mais diversas origens e idades. Essa capacidade
de ver sem ser visto, essa possibilidade de agir sem ser detectado aparece recorrentemente
como um recurso útil para os mais diversos projetos, mas também pode acarretar dilemas
e dificuldades para quem lançar mão dessa habilidade. Do romance de Herbert George
Wells, “O Homem Invisível” (1897), passando pelo seriado de TV americano
dos anos 60 com o mesmo nome até diversos personagens de filmes de animação mais
recentes, a capacidade de se tornar invisível atrai atenção e desperta a
imaginação.
Hoje, nas nossas metrópoles, vivemos outras
invisibilidades mais complexas e menos glamurosas.
Nosso olhar, submetido a um jorro constante e exagerado de imagens e
informações que nos chegam das mais variadas fontes e sem que necessitemos da
maioria delas, acaba nos obrigando a privilegiar o foco em detrimento das
periferias do campo visual. Assim a todo momento estamos olhando sem ver, visualizando
sem enxergar. Nas ruas, no computador, em casa, diante da TV ou até mesmo
defronte a uma obra de arte, perdemos várias informações que não são processadas
devidamente em nosso cérebro devido a essa enxurrada imagética. Mas nossa seleção visual muitas vezes também
tem contornos sociais, políticos e ideológicos e é nesse ponto que gostaria de
propor uma reflexão sobre a foto que acompanha esse texto.
Essa foto foi tirada por mim em uma praça
do bairro do subúrbio carioca onde moro. Nossa cidade, como muitas outras
espalhadas pelo Brasil e pelo mundo, vive o drama da dependência química que, principalmente
através do crack, tornou “visível” um
problema social terrível e de difícil enfrentamento. As crackolandias na medida em que se estabelecem a beira dos grandes
corredores urbanos ou são objeto das matérias sensacionalistas da mídia,
obrigam nosso olhar. Mas será que conseguimos ver?
Passando por essa praça e a partir do meu
interesse por essa questão identifiquei nessa pessoa, coberta por um cobertor
sujo em um calor de mais de 30º C, uma dessas vítimas da nossa invisibilidade
seletiva e social. Passamos diariamente por personagens como esse, mas nesse
caso, a invisibilidade e o anonimato parecia claramente ser uma opção do
sujeito e não objeto de nossa indiferença ou preconceito. Debaixo daquele
cobertor, uma história, uma vida, um irmão ou irmã, estava se preservando do
olhar da sociedade. Provavelmente por não querer ser visto, julgado e analisado
por essa mesma sociedade que não o incluí nem o aceita. Mas que o julga, o
estuda, o recolhe para centros de triagem, tenta em vão afastá-lo das drogas e
das ruas, mas que não tem capacidade de combater diretamente as causas e as
distorções que provocam tanta desigualdade e que jogam milhões nessa mesma
condição de indigência.
Notei que a pessoa manuseava algum objeto
próximo a sua boca. Os movimentos ocultos de seus braços denunciavam essa ação.
Um questionamento ético sobre se eu tinha o direito ou não de tirar aquela foto
me sobreveio. Mas diante do anonimato preservado no ângulo que escolhi, resolvi
fazer o registro com meu celular e chegando em casa postei nas redes sociais
pedindo simplesmente que as pessoas comentassem o que viam naquela cena. A
primeira constatação sobre esse tipo de invisibilidade veio no baixíssimo
número de pessoas que se pronunciaram aceitando o desafio. Como se aquele
cobertor realmente tivesse poderes sobrenaturais de tornar o cidadão e suas
mazelas invisíveis. Certamente outras fotos publicadas que apresentassem
situações esdrúxulas ou envolvessem fofocas de celebridades receberiam cem
vezes mais posts. Dos poucos que
reagiram a minha provocação uma pequena parte reproduziu o senso comum com
observações infelizes carregadas de preconceitos referindo-se mal
disfarçadamente ao indivíduo oculto pelo cobertor como marginal, fraco de
caráter, inimigo e perigoso. Outros maldisseram as drogas e o Brasil e classificaram
a cena de triste, angustiante, inadmissível. Os mais espirituais decretaram que
só Deus teria a resposta para isso e os espirituosos definiram como sensação de
vazio. Os colegas do Laboratório de
Antropologia Audiovisual da UFRJ reagiram de maneira mais qualificada e
científica evitando os estereótipos, mas todos enxergavam naquela representação
iconográfica um problema social grave. Mas
seria o crack, ou qualquer outro abuso de droga, a população de rua e os
eventuais delitos cometidos, os problemas sociais? Ou estes seriam os efeitos
dos verdadeiros problemas sociais implícitos na desigualdade crônica e
exagerada de nossa sociedade, que mantém a lógica consumista e individualista
de nosso mundo? Problema complexo demais para que eu pudesse chegar a uma
conclusão definitiva ali diante daquele irmão ou irmã com o cobertor na praça,
principalmente imprensado como eu estava por um compromisso profissional que
para mim era inadiável.

Mesmo sabendo que o tempo que eu, dentro
das prioridades da minha própria sobrevivência, entendia ter como disponível para
aquela abordagem provavelmente seria insuficiente para qualquer efeito positivo
e duradouro, voltei e me aproximei desse cidadão ou cidadã. Agora pela frente,
para me esquivar dos poderes de invisibilidade do cobertor. Fui tentando me
preparar para qualquer reação, mesmo agressiva, que poderia vir daquele que
seria invadido por mim e surpreendido em uma prática recriminada pela sociedade.
Diante dele ou dela, os poderes do cobertor
continuaram ocultando seu rosto. Mas a sua ação me foi revelada: ele ou ela
estava comendo um pão velho e sujo. Tirava pequenos pedaços e os levava a boca.
Envergonhado e confuso fui embora sem me sentir capaz, naquele momento, de ultrapassar
aquela fronteira da invisibilidade social que eu acabara de ajudar a fortalecer.