Não era “Woodstock”, mas a história do jovem americano que conhece um grupo
de hippies antes de se alistar para lutar no Vietnã era o que mais se aproximava de suas expectativas naquele
momento. A sessão já havia começado e o cinema estava quase vazio. Foram direto
para o banheiro pomposo de louças e azulejos azul marinho que subiam até a
metade da parede, fechando o ambiente de maneira claustrofóbica como uma
espécie de sarcófago esterilizado. Entraram juntos em um dos reservados que
ocultavam os vasos sanitários e fecharam a porta. Nervoso e desajeitado Lelo retirou sua identidade da carteira
e o papelote do bolso. As embalagens da brizola
daquele tempo eram quase peças de artesanato. Um pequeno pedaço de filme de
polietileno transparente medindo uns 4
cm² envolvia o pó entrando em contato direto com a droga, tentando
protegê-la da sua maior ameaça: a umidade. Um pedaço um pouco maior de papel
vegetal agregava sua rigidez e encorpava a embalagem, abraçando o pó e o
polietileno, dobrando-se ao meio e unindo suas beiradas que recebiam mais duas
dobras estreitas no sentido horizontal. Depois, as extremidades laterais eram
dobradas para a parte traseira, formando uma espécie de minúsculo envelope retangular.
Por fim um grampo de metal dava a inviolabilidade necessária. Lelo
livrou-se do grampo com a ponta da unha do polegar da mão direita e desfez as
dobras do papel vegetal formando uma canaleta.
O pó afrouxou-se na embalagem enquanto Lelo
espalmava seu documento plastificado na mão esquerda. Com a direita entornou o
conteúdo do papelote em cima da identidade. Seu rosto adolescente estampado na
fotografia ficou semi-encoberto pelo pó branco e cristalino. Pediu para Toninho
segurar o documento com cuidado enquanto procurava no bolso a cédula de papel
mais novo que, enrolada, se transformou em um canudo. Toninho tomou em suas
mãos aquele minúsculo monte nevado e encarou bem de perto a face do diabo
moído, que ali descansando em sua mão não pareceu nem um pouco assustador.
Enfim a cocaína o havia encurralado naquele pequeno cubículo, mas ele se sentia
no controle absoluto da situação. Não havia tempo para formalidades naquela
apresentação. O canudo passou para as mãos de Toninho e a carteira voltou para
a esquerda de Lelo que com outro
documento também plastificado na destra, espalhou a brizola pela superfície de sua identidade em duas carreiras
irregulares e mal alinhadas. Toninho media e registrava cada movimento do amigo.
Lelo pegou o canudo de sua mão,
cravou-o dentro de sua narina direita e aproximou a carteira de seu rosto. Com
um movimento rápido como o bote de uma serpente, golpeou a pequena rapa com a
ponta livre do canudo fazendo a cocaína desaparecer por dentro dele. Em seguida
estendeu a carteira e passou o canudo para Toninho que imitou os movimentos do
amigo. Seu desempenho foi compatível com o de um iniciante que era. O poder de
sucção de sua primeira investida não foi suficiente para sorver todo o conteúdo
da trilha que lhe havia sido destinada. Algumas partículas não conseguiram se
agarrar a mucosa de seu nariz e retornaram pelo canudo para se espalharem
novamente pela fotografia de Lelo, que
decidiu orientá-lo enquanto juntava o
que estava espalhado para auxiliar o amigo e sair logo daquele banheiro deserto
e tétrico.

- Tampa a esquerda.
Toninho tampou com o polegar a
sua narina esquerda e concentrou sua força na direita para a segunda tentativa.
Dessa vez a viagem do pó transcorreu sem imprevistos e o restante da cocaína
foi se acomodar no tecido irrigado por pequenos vasos que revestiam a parte
interna do nariz mouro daquele luso descendente. A cocaína iniciava a sua primeira
turnê pela corrente sanguínea de Toninho na busca por seu cérebro ainda virgem
de seus efeitos. Toninho sentiu uma pequena ardência no nariz que não chegou a
ser insuportável, pois durou poucos segundos. Depois um gosto amargo de éter
escorreu por sua garganta fazendo-a ficar mais apertada. Lelo passou os dedos sobre os restos aderidos na plastificação de
sua identidade e esfregou-os nas gengivas superiores. Saíram do banheiro e
foram se sentar na sala de exibição, aonde o filme já chegava quase a metade. Toninho
sentiu suas gengivas estranhamente dormentes como costumavam ficar quando eram
anestesiadas na cadeira do dentista. A cada nova seqüência que se desenrolava
na tela, teciam comentários diversos que emendavam em outros assuntos
desconexos. Em poucos minutos estavam falando sem parar num ritmo frenético
demais para possibilitar que qualquer atenção fosse destinada à película. Um
prazer de difícil descrição e uma euforia repentina tornou impossível ficarem ali
sentados. Umas vontades de iniciar alguma coisa e se mover para algum lugar se
antecipavam a qualquer esboço de relaxamento ou concentração. Levantaram-se e
tentaram assistir ao filme de pé, encostados em um pequeno parapeito que balizava
a última fileira de poltronas, enquanto continuavam conversando. Embora com o cinema
praticamente vazio, julgaram que seu falatório estava incomodando a meia dúzia
de espectadores espalhada pela grande sala. Sentiram-se observados e censurados
por eles embora a presença dos dois não pudesse ser percebida na penumbra da
sala escura. Isso foi mais do que suficiente para decidirem ir embora antes do
fim da sessão. Na Avenida Princesa Isabel
pegaram o primeiro ônibus que os deixou na Leopoldina para embarcarem em outro que os levaria para casa.
Os assuntos tornavam-se subitamente interessantes e
rapidamente também eram substituídos por outros em propostas e compromissos que
projetavam várias realizações no futuro de curto e médio prazo daqueles dois. Sentiam-se
prontos para aceitar qualquer desafio e particularmente integrados àquela
energia essencialmente urbana que a metrópole trocava com eles. Lelo falou sobre uma novidade que iria
revolucionar o mercado fonográfico. Um pequeno disco plástico, com apenas um
lado tocável, estaria em breve substituindo as pesadas bolachas de vinil com
uma qualidade de som infinitamente superior. Não haveria mais a necessidade da
troca de agulhas nos aparelhos de reprodução sonora. O “compact disk”, ou CD, chegaria para decretar a morte dos LPs. Toninho duvidou. Debochou do amigo
e disse ser impossível trocar seus álbuns de capas grandes por qualquer engenhoca
moderna. Com certeza essa novidade não iria dar certo.
(trecho do livro "Sacudindo o Pó da Estrada" de Antonio Ernesto Martins)