A MULATA DO CINE
VITÓRIA
Um conto de Antonio
Ernesto

Uma em especial lhe
chamava a atenção. Ficava sempre em frente ao extinto Cine Vitória, número 45 da Rua
Senador Dantas, ao lado de uma floricultura. Era uma mulata de quadris
descomunais e se destacava das outras meretrizes do lugar por estar em uma
faixa etária um pouco mais próxima a dele. Devia contar uns 30 anos, enquanto
as outras pareciam bem mais velhas e gastas. Afinal, 30 anos eram apenas um
pouco mais do que o dobro da idade dele. Depois de várias tentativas e outras
tantas desistências, em uma tarde morna de verão, encheu-se novamente de
coragem, desceu do ônibus e foi em direção àquela mulata que bem poderia ser
uma personagem do cartunista Lan.
Quando chegou perto da
mulher, ela lhe atravessou a alma com um olhar tão assustador, que petrificou
seu maxilar e todo o resto do seu corpo. Só conseguiu grunhir entre os dentes
um cumprimento que na verdade já queria ser uma despedida. A mulata retribuiu.
-
Oi bebê. E aí? Vamos?
Ele não sabia o que
tinha sido pior: ser chamado de “bebê” ou a falta de rodeios com que aquela
mulher havia entrado no assunto. Automaticamente fez com a cabeça que sim.
Assim, mais de perto, pode ver que a mulata era realmente uma mulher bonita.
Devia ter uma grande clientela, pensou. Ela convidou-o a segui-la e saiu
andando na direção do Passeio Público,
onde ficava a loja de departamentos Mesbla.
No caminho informou o preço dos seus serviços. Após um cálculo rápido do que
tinha nos bolsos ele concordou mecanicamente. Tentou travar algum diálogo
durante a caminhada, que começava a durar uma eternidade, mas seus assuntos
haviam desaparecido em um passe de mágica deixando em seu lugar apenas uma dose
cavalar de ansiedade e um pavor de ser visto por alguém conhecido.
Um pouco antes do Teatro Serrador, ao lado de uma
sapataria, aquela bunda imensa entrou em um corredor estreito que levava os
sorrateiros para um prédio com várias salas comerciais. Na entrada a mulata foi
cumprimentada pelo porteiro com um sorriso maroto que por pouco não fez o
cliente estreante disparar uma correria envergonhada que só pararia na Praça Tiradentes, onde poderia pegar a
condução para casa. Pensou consigo mesmo: “É
agora ou nunca. Agora não tem mais volta.”
Chegou a se ofender
mentalmente: “Deixa de ser covarde seu
mariquinha, filhinho de mamãe.” Subiram dois lances de escada. Tentava
acalmar a respiração. A mulher parou em frente a uma das várias portas do
extenso corredor e tocou a campanhia.
Pensou: “É melhor voltar outro dia.” Mas antes
que pudesse externar suas hesitações e inventar alguma desculpa para descer
aqueles degraus por onde subira, a porta se abriu e revelou um velho de cabelos
grisalhos, barba por fazer e com os dentes amarelados de nicotina. Sem
disfarçar seu mau humor que parecia saltar de seu semblante, o velho afastou-se
para que o casal entrasse e fechou a porta nas suas costas.
“Agora
já era.”, pensou, enquanto vasculhava o lugar com seu olhar
tímido procurando uma outra alternativa de fuga que não fosse a porta fechada
pelo homem de aparência suja. A mulata o pegou pela mão e o levou a um corredor
iluminado por uma luz fraca e vermelha onde haviam vários biombos separados por
folhas finas de compensado, que escondiam suas intimidades através de cortinas
também finas de um estampado de gosto duvidoso. De um desses biombos vinham
gemidos de alguma trabalhadora daquela empresa. Ela parecia estar se esforçando
em cumprir bem o seu dever, aumentar a produtividade, atingir as metas.
Achou que seu coração
havia parado. Ou batia tão forte que não dava pra sentir o seu bater. Sua
acompanhante afastou com a mão uma das cortinas revelando um pequeno
quadrilátero com uma maca de hospital, forrada com um lençol puído que um dia
devia ter sido branco. Não havia janela. Nem pular por uma era possível.
-
Vai tirando a roupa, bebê, que eu já venho.
A mulher saiu e o frio
que estava na sua barriga fugiu para sua espinha dorsal, voltou para a barriga
e se alojou nos seus pés quando ele tirou os sapatos. Só de cuecas sentou-se na
maca que era alta e que deixou suas pernas suspensas no ar. Lembrou-se das
vezes em que tinha estado em um hospital e do pavor que tinha de injeção.
“Não”.
Não podia pensar nisso agora. Tentou mentalizar os “catecismos” em quadrinhos eróticos de Carlos Zéfiro, que algumas vezes haviam caído em uma de suas mãos
enquanto a outra ficava ocupada. Nada dava certo. Não conseguia se acalmar.
Pensou em pedir ajuda a Deus. Mas lembrou de que aquilo não era assunto para
ser levado às esferas divinas. Com certeza o Criador iria se aborrecer e aí é
que nada daria certo mesmo. É bom lembrar que eram tempos em que não havia
AIDS. Já ouvira falar em Camisa de Venus,
sabia como era usada e que servia para evitar a gonorreia e a gravidez. Mas
nunca tinha visto uma de perto. “Palavra feia essa tal de gonorreia.”,
pensou. “Talvez devesse ter trazido uma
camisinha.” É isso. “Essa é uma boa
desculpa: falo pra ela que vou comprar uma camisinha e não volto mais.”
Ainda nem tinha arquitetado totalmente o seu plano de fuga, quando a mulata
entrou no cubículo. Ela não estava sem roupas. Trazia apenas uma toalha, uma
pequena bacia e uma garrafa de álcool nas mãos.
-
Pode deitar bebê.
Se esticou na maca como
se fosse um defunto no necrotério.
-
Você tá nervoso?
A mulata fez essa
pergunta de resposta óbvia enquanto levava as cuecas do garoto até os joelhos,
revelando suas partes intimas e todo o seu desconforto com aquele momento.
-
Vamos dar uma limpezinha nele?
Não dava pra responder
nada. “Ele” a essa altura do campeonato já havia sumido em meio à vegetação do
seu púbis imaculado. Havia abandonado o campo de batalha como um desertor
covarde deixando-o desarmado diante da fera sanguinária. Foi quando as
primeiras gotas do álcool banharam “ele”, gelando tudo o que, por milagre,
pudesse ainda não estar gelado. Deu um pulo da maca como um moribundo reanimado
por um desfibrilador. Enquanto se recompunha e vestia suas calças recorreu ao
seu dom de bom contador de histórias. Disse que uma antiga namorada havia feito
macumba para ele. A mulata se mostrou compreensiva
e até recomendou um pai de santo, seu conhecido, que poderia desfazer o
trabalho. Mas a compreensão não foi suficiente para não cobrar o cachê acertado
previamente.
Entregou as cédulas e
desceu aquelas escadas arrasado e aliviado ao mesmo tempo. Encontrou novamente
o sorriso malicioso do porteiro na saída, mas dessa vez retribuiu na mesma
moeda como quem, triunfante, havia desfrutado plenamente de tudo que aquele
corpo de aluguel podia oferecer. Aquela satisfação mentirosa, jogada na cara do
porteiro sugeria refestelo. Foi um gol de honra marcado aos 45 do segundo
tempo. Mas não evitou a sua derrota por goleada.
Alguns meses depois a
mulata desapareceu para sempre do seu tradicional ponto. Nunca mais a viu por
lá. Sempre a procurava através do vidro da janela do 184, Central-Laranjeiras. Mas ela sumiu sem chance de revanche.
Talvez tivesse mudado de empresa ou se casado com um cliente rico e apaixonado.
Caminhando para a casa
de sua Tia Alice deixou escapar pelo
canto de seus lábios um pedaço daquele mesmo sorriso que trocara com o porteiro.
Imaginou sua vergonha se essa história vazasse para alguns de seus amigos.
Finalmente, depois de muito sofrimento, conseguiu fazer aquele fiasco parecer
engraçado, amenizado pela ação do tempo e protegido no segredo da sua memória.
Excelente texto,faz com que entremos na história e sejamos a mosca.Observando tudo de perto,sem interferência.Parabéns!!
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