sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A MERITOCRACIA NEGRA

Vinícius Romão
Existe um contrato social, nos bons termos de Rousseau, vigente em nossa civilização contemporânea que dá ao estado a prerrogativa do monopólio do uso da força para garantia dos direitos dos cidadãos e preservação do cumprimento de seus deveres. Podemos até alegar que não somos signatários de nenhum contrato, mas esperamos que esse privilégio estatal seja utilizado em nossa defesa sempre que nós, nossa família ou nossas propriedades forem ameaçadas. Dessa forma, depositamos no braço armado do estado com seu poder de polícia a confiança de que essa força seja exercida na defesa do respeito aos direitos individuais e na preservação da ordem.
Mas o que fazer quando esse contrato é quebrado como no caso da prisão do ator, vendedor e psicólogo Vinícus Romão? Como não se indignar diante de uma injustiça praticada justamente por aquele ator estatal que deveria defender-nos dessas barbaridades? Vinícius após uma temporada de 16 dias na cadeia, preso injustamente através de um procedimento policial ilegal, evita falar diretamente em discriminação racial. Mas basta olharmos com um pouco mais de atenção para nossa sociedade para verificarmos que nossa extrema desigualdade, econômica, de oportunidades e de representações, tem raízes aprofundadas nas questões racistas e no legado da escravidão.
O coturno na porta do barraco, o tapa na cara nas vielas escuras das periferias, o desrespeito sistemático aos direitos humanos, têm alvo certo e a truculência policial quase sempre é disparada como um projétil teleguiado e programado para atingir a cor da pobreza. E a cor da pobreza brasileira é essencialmente negra.   Basta andarmos pelo centro do Rio de Janeiro para verificarmos a grande predominância de brasileiros negros na população invisível dos moradores de rua. Predominância proporcionalmente inversa nas arquibancadas do Maracanã por ocasião da decisão da Copa das Confederações.  
O antropólogo Luiz Eduardo Soares me contou que prepara um trabalho no qual, com o costumeiro brilhantismo de sua mente acostumada a fazer conexões extraordinárias entre a academia e as periferias, vai se debruçar sobre os fatores históricos e políticos que nortearam a inserção do elemento negro na nação brasileira e que explicam, sem justificar é claro, a divida social impagável que nosso país tem para com esses cidadãos por tanto tempo submetidos a uma subcidadania.
Nesse aspecto histórico do problema vejo que a meritocracia impregnada no pensamento do senso comum brasileiro legitima não só a desigualdade como também determinadas ações do estado marcadas pelo arbítrio. É comum o pensamento de que quem está socialmente fragilizado chegou aonde fez por merecer. Não se empenhou, é fraco de caráter, e merece castigo. As intransponíveis barreiras sociais e políticas que separam as classes são vistas como obstáculos autênticos e válidos dentro dessa meritocracia que admite preconceitos e orienta políticas públicas. Apoiados nesse pensamento agem desde os justiceiros aos maus policias, abençoados por grande parte das elites. Mas o mais cruel é que esse raciocínio não é monopólio das elites e torna-se ainda mais vil quando é disseminado entre as populações mais carentes, vitimas dessa lógica.
Assim fiquei surpreso, mas resignado, quando ouvi em uma conversa entre um trocador de ônibus e um passageiro – ambos negros – a seguinte afirmação: “Também né?...um negão na rua de noite...com aquele cabelo...tá pedindo pra rodar, né?”


Vinícius Romão quebrou a barreira da segregação racial velada que existe no Brasil. É um negro com curso superior, trabalho formal e família estruturada. E talvez por isso tenha conseguido sair desse episódio absurdo sem marcas mais profundas. Mas muitos outros Vinícius ainda podem estar na cadeia, injustamente presos aos grilhões sociais que substituíram as correntes dos senhores de escravos. E por serem negros e nunca terem atuado em uma novela da TV Globo não irão causar espanto aos meritocráticos de plantão. 

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

We can...nabis or not?


Já vão longe os tempos em que a maconha era vendida livremente nas farmácias do mundo. No Brasil ela foi proibida em 1932, mas antes dessa proscrição comandada pelo governo Vargas, podia ser encontrada nas drogarias do Centro da então Capital Federal em diversas apresentações. Como na forma dos Cigarros Índios , indicados para “ Asthma, Catarrhos e Insomnia” e com propagado efeito reparador para “dificuldade em respirar, roncadura” e até para os “flatos”.
De Nixon que pautou sua campanha a presidência dos EUA em uma recuperação incondicional dos bons costumes e na chamada “guerra às drogas”, até Obama que admitiu ter dado uns tapas na erva e, recentemente, declarou que a marijuana não é mais maléfica que o álcool, muita água passou por debaixo da ponte, muita goma umedeceu as cedas, muita fumaça foi jogada nas cacholas. E apesar da decantada guerra as drogas que consumiu bilhões de dólares e jogou na cadeia milhões de pessoas, em sua maioria negros e pobres, a maconha continua sendo a droga ilícita mais usada em todo o mundo.
Uma forte corrente anti-proibicionista parece varrer o mundo com argumentos defendidos apaixonadamente por aqueles que não se conformam com o contrassenso hipócrita que aceita determinadas drogas na legalidade enquanto demoniza outras. A legalização e o controle, principalmente da maconha, aparecem nesses discursos como a panaceia para uma sociedade que está perdendo a alardeada guerra para as substancias psicoativas e onde as mais recentes estatísticas acusam um aumento generalizado no uso e, em alguns segmentos específicos, no abuso das drogas.    
A maconha é um sucesso de vendas globalizado e a “mão invisível” de Adam Smith que transforma tudo em mercadoria dentro da economia de mercado já percebeu isso. Mesmo com as contradições entre a realidade científica e a realidade cultural que confrontam interpretações antagônicas sobre os efeitos da erva, o fato é que um agricultor do Colorado (EUA) já fez as contas e percebeu, com água na boca, que o que pode render um hectare de maconha é cem vezes mais do que um hectare de alfafa. A indústria e o mercado se preparam para uma transformação sem volta que, por tesão econômico, irá enfrentar os pensamentos mais tradicionais e apoiar o liberação da marijuana.
Nessa arena de debates, exageros de todos os lados são verificados, tanto de proibicionistas que teimam em associar comportamentos inadequados e problemas de saúde superdimensionados ao uso de maconha, quanto da turma da liberação que por vezes chegam a interpretar a maconha como uma entidade espiritual superior capaz de solucionar todos os problemas da existência humana.
Mesmo causando dependência psicológica em um percentual relativamente pequeno de usuários, se comparada aos percentuais de dependência de outras drogas – como o álcool, o tabaco e a cocaína por exemplo – e com a possibilidade de agravamento de transtornos psicológicos pré existentes, a maconha ainda aparece como uma droga de baixo potencial de destruição e seu uso, em grande parte dos consumidores, não impede o desempenho dos diversos papéis sociais do indivíduo.   Entretanto, nem por isso deixa de ser droga e o fato de passar a ser admitida dentro de determinados arranjos sociais não pode servir de disfarce para ser entendida de outra maneira, com o risco de sairmos de um proibicionismo irracional e motivado por interesses políticos para uma idolatria fanática e fundamentalista.
A decisão pelo uso ou não de uma determinada substancia carrega em si uma escolha racional e pessoal do individuo, salvo naqueles casos em que a razão já foi derrotada pela dependência química e psicológica. E nesse sentido a moderação se torna um objetivo mais viável e positivo do que a abstinência total. Tanto na relação do homem com as drogas, quanto no próprio debate social que se apresenta sobre o assunto, o equilíbrio parece ser o caminho mais indicado.  




segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Meu Pai - Memórias da Imigração



Antonio Gomes Martins
Naquela manhã do dia 08 de junho de 1951, a vida transcorria calmamente no Conselho de Arouca, interior de um Portugal castigado pela crise econômica e pela falta de opções de trabalho. O governo ditatorial de Salazar, que havia chegado ao poder em 1932, tinha conseguido a proeza de não se envolver diretamente nos conflitos da Segunda Grande Guerra, que arrasaram a Europa, deixando um rastro macabro de morte e destruição.  No entanto, essa neutralidade teria um preço. Do alto de seu palanque o déspota, simpatizante dos movimentos fascistas, proferiu ao povo português a sentença:    “Livrem-vos da fome que eu vos livro da guerra”.

Assim como Hitler e Mussolini, Salazar vinha do povo com um discurso populista, mas ao contrário destes, tinha diploma universitário, havia lecionado na Universidade de Coimbra e seu projeto de um regime estável para Portugal, não tinha em seu bojo nenhuma ideologia revolucionária. Era um católico convicto que almejava um estado forte e fiel aos dogmas da igreja católica. Antes de tudo era um antiliberal que repudiava o socialismo, as lutas de classe, o sistema de partidos e o sufrágio universal. Apoiado no exército instaurou um estado nacional cristão em Portugal, calcado na família e nos valores católicos. Extremamente conservador, Salazar, teve o mérito de manter a paz social em um país atrasado nos quesitos técnicos e com uma economia incapaz de prover às novas gerações, esperanças de ascensão social e de dias melhores. Nesse cenário o Brasil acenava como o sonhado Eldorado. Como a terra promissora, celeiro de oportunidades de enriquecimento e receptivo a chegada de mão de obra estrangeira. Nos anos 50 houve um grande aquecimento nesse fluxo migratório, com os navios deixando o Porto e Lisboa apinhados de emigrantes que, incentivados pelo próprio governo Salazar, desembarcavam em terras brasileiras aos milhares na aventura do Novo Mundo. Geralmente viajava primeiro o chefe da família. O pai ia à frente, para sondar o terreno e plantar as bases econômicas que permitiriam a ida do resto da família. Mas também partiam primeiro os mais jovens e solteiros detentores da energia necessária para o trabalho pesado. Para poderem ser liberados pelo governo português e aceitos pelo governo brasileiro, precisavam ter alguém no Brasil que se responsabilizasse, através de uma Carta de Chamada, pela tutela do imigrante em seus primeiros anos na antiga colônia portuguesa. Caso algo de funesto acontecesse, como doença grave, falta de adaptação a nova terra ou impossibilidade de seu auto-sustento, essa pessoa teria que se encarregar das custas para a repatriação do cidadão português.
Naquele 08 de junho de 1951, quase ninguém reparou em Antonio, que deixava o prédio da Secretaria Notarial de Arouca, no edifício dos Paços Municipais. Ao seu lado estava seu filho varão mais velho, nessa época com 16 anos. Como todo bom primogênito também carregava o primeiro nome do pai. Nas mãos de Antonio – o filho -, estava um papel datilografado, com algumas assinaturas e com o polegar de seu pai aposto no verso. Nele podia-se ler:
 
Ficha de Migração
“...compareceu o Senhor Antonio de Oliveira Martins, casado, alfaiate, morador do lugar de Soutêlo, freguesia de Chave, deste concelho, pessoa cuja identidade reconheço pela abonação das testemunhas deste acto, minhas conhecidas. E por ele foi dito: Que, pelo presente instrumento, dá autorização e pleno consentimento ao seu filho Antonio Gomes Martins, solteiro, menor, de dezasseis anos de idade, sapateiro, convivente com ele outorgante no dito lugar de Soutêlo, para se auzentar do Continente da República, para a cidade do Rio de Janeiro, República dos Estados Unidos do Brasil, indo recomendado a pessoa de sua inteira confiança e que se obrigou a prestar-lhe alimentos e a promover a sua custa a sua repatriação, no caso de esta, por qualquer motivo se tornar necessária...”

Antonio – o pai – era casado com Margarida e tinham mais quatro filhos: Adélia – a mais velha de todos que havia entrado para o convento -, Abílio – que mais tarde também embarcaria para o Brasil -, Manoel e Sofia. A vida não era fácil na aldeia. Margarida criava algumas galinhas e vendia ovos para ajudar no orçamento familiar, enquanto o marido, embora alfaiate, também trabalhava na pequena quinta da família plantando e colhendo alguns legumes e verduras para sua própria subsistência. A aparência frágil de Margarida escondia um enorme coração. A tudo se calava e nada parecia abalar sua fé em Deus e sua paciência com as dificuldades da vida. Era uma mulher doce, agradável e resignada com sua sorte, que se dispunha a cuidar dos pequeninos da aldeia, quando os pais iam para o trabalho no campo. No início dos anos 80, quando o Pai Eterno a chamaria para o paraíso, uma cena iria emocionar todos daquele lugar. Aquelas pessoas que, quando crianças ela havia cuidado, rodeariam seu caixão tomadas pela dor, pela saudade e pela gratidão. O velho Antonio era um homem rude e de poucas palavras, mas reconhecidamente honesto e de boa índole. Fumava muito e também era adepto dos prazeres do vinho.

O pequeno Antonio cresceu vendo a dificuldade da família e sonhando com uma oportunidade de reverter aquele cenário. Aos 14 anos chegou a trabalhar como ajudante do sapateiro local que lhe ensinou o ofício, mas não era o suficiente. O espírito desbravador português gritava em seu peito e o oceano lhe desafiava. Ouvia as histórias dos conhecidos que haviam embarcado para o Brasil e tinham enriquecido. Vez por outra, um desses brasileiros – como eram chamados os retornados – chegava à aldeia ostentando sinais de prosperidade e opulência tão distantes da realidade da pequena Soutêlo. Não tardou o dia do pedido. Chegando perto do pai revelou seu desejo de migrar para o Brasil. No Rio de Janeiro estava um tio seu que poderia lhe enviar a carta de chamada e acolhê-lo nos primeiros tempos. O velho Antonio não disse nada de imediato. Pensou como iria arranjar o dinheiro para a passagem do filho. Já havia estado no Brasil e sabia que a vida nas Américas para um imigrante não era fácil. Conhecia também as ciladas e armadilhas que a vida fora da pátria natal apresentava. Por outro lado, sabia que pouco poderia fazer pelo filho em sua terra. Sem mostrar nenhuma emoção, apenas perguntou ao filho:

- É isso mesmo que tu queres?

A resposta afirmativa veio como uma flecha. Com a mãe chorando na porta de sua casa, que ele levaria mais de 30 anos para rever, Antonio se despediu dos irmãos e entrou com o pai em uma carrinha que o levou para a cidade do Porto, onde embarcaria no navio Salta. Ainda no cais, o pai lhe deu as últimas recomendações. O coração do pequeno Antonio batia cada vez mais forte a cada passo que ele dava na ponte que o levava a bordo. No alto do convés, uma última olhada para o seu Portugal antes de ser conduzido ao porão onde se localizavam os alojamentos da terceira classe. O garoto de 16 anos agora estava sozinho em sua aventura.

O Salta era o resultado de uma conversão feita em um porta-aviões britânico que havia sido utilizado na Segunda Guerra. Com o fim do conflito o navio havia sido devolvido pela Marinha Real Britânica aos EUA, ficando inativo até 1949, quando foi comprado e adaptado para o transporte de imigrantes pela companhia argentina Dodero Line. Tinha capacidade para 1.320 pessoas em instalações bastante modestas e compactas, cobrindo a linha Gênova-Buenos Aires, com escalas no Porto, Lisboa, Rio de Janeiro e Santos. Durante os 16 dias da longa viajem, o jovem Antonio andava pelo convés mirando a imensidão do mar, tentando controlar sua ansiedade que o fazia revisar o horizonte de hora em hora a procura de um sinal da terra prometida. Lembrava que o Tio Manuel, que o esperava no Rio de Janeiro, havia mandado o dinheiro para a passagem e se sentia extremamente grato e ávido para cumprir a obrigação de ressarcir a ele essa despesa a custo de muito trabalho. Era um jovem bonito e forte. Suportou bem as agruras da viajem. Não podia sequer imaginar a possibilidade de ficar doente. Na manhã do 16º dia de viajem, Antonio pulou da pequena cama de sua cabine e correu para a proa do navio. Lá finalmente pode avistar os contornos do famoso relevo do Rio de Janeiro, quando o Salta adentrou a Baía de Guanabara. Pela primeira vez sentiu medo e saudades. Mas a curiosidade afastou temporariamente esses sentimentos. Rapidamente reuniu seus parcos pertences na pequena mala e, com a documentação em mãos, se preparou para o desembarque no cais da Praça Mauá. Pisaria pela primeira vez em solo brasileiro. Um solo onde ele plantaria suas raízes, constituiria sua família e escreveria sua história a custo de muito suor, dissabores e alegrias, vitórias e derrotas.

Estava encostado na murada da embarcação aguardando o fim da manobra de atracação quando um companheiro de viagem se aproximou também tomado pela euforia e pelo alívio do fim da jornada. Enquanto conversavam animadamente, o homem puxou do bolso um maço de cigarros. Acendeu um e ofereceu outro a Antonio. O jovem português aceitou a oferta e acendeu seu primeiro cigarro. Enquanto baforava a fumaça resultante da combustão do tabaco, sentiu-se um homem absoluto. Adulto para fumar e livre para buscar o seu sustento naquele país que lhe acenava com um mar de possibilidades. Lembrou da mãe que certamente ralharia com ele se o visse fumando. Mas não se sentiu culpado. Estava longe demais para poder magoar aquele coração materno com qualquer atitude. Não sabia, mas estava iniciando um hábito que o acompanharia por mais de 40 anos.
Passaporte

Em terra, seu tio Manuel o esperava com um abraço de boas vindas. Era um bom homem de saúde frágil. Tomaram um táxi e partiram para a primeira habitação de Antonio no Brasil. O tio morava na Rua Barão de São Felix, em um dos vários sobrados de arquitetura portuguesa que formavam um corredor movimentado. Armazéns, garagens, restaurantes, frigoríficos, muitas pensões e algumas vilas, serviam de cenário para um ambiente que, às vezes, parecia ser um pedaço de Portugal no Rio de Janeiro, tamanha era a população de imigrantes lusos naquela região. A Barão de São Felix ficava por trás do famoso prédio do relógio da Central do Brasil, ao pé do Morro da Providência e paralela a Avenida Presidente Vargas. Era também uma região boêmia de grande agitação noturna. Alimentados pelo tráfego dos passageiros na gare da estação ferroviária Pedro II, os cabarés e gafieiras fervilhavam formando um eixo de pecado que rivalizava com a Lapa e a Praça Mauá. O jovem Antonio logo faria o reconhecimento desse novo habitat e se adaptaria com maestria à malandragem carioca, o que lhe renderia o apelido de Malandrote. Alcunha que lhe foi atribuída por um amigo também imigrante, em substituição ao Arrebita que havia trazido da infância na pequena aldeia portuguesa. Começou trabalhando como ajudante de sapateiro, mas logo passou para atendente de balcão em um restaurante na mesma rua em que morava. Em todo trabalho se destacava por sua determinação, seriedade, responsabilidade e disposição para a labuta. Acabou atraindo a admiração e amizade do português dono do estabelecimento que o promoveu a garçom. O cigarro já era companheiro constante e logo recebeu o reforço da cerveja, da bagaceira e do vinho, na tarefa de suportar a saudade de casa e de transitar pela face mundana do Rio. O álcool o acompanharia até o último de seus dias. Também não recusava uma boa briga, em uma época em que se brigava na mão ou, no máximo, com uma navalha. Chegou a ser salvo por uma carteira de motorista no bolso da camisa, quando uma chave de fenda inimiga já tomara o caminho de seu coração. Mostrava com orgulho a carteira de capa grossa, perfurada pelo artefato pontudo. Assim conseguiu pagar a passagem ao seu tio que morreria dois anos após a sua chegada. Numa terra distante e estranha, em meio a algumas xenofobias e hostilidades dos brasileiros, estava se saindo bem. Andava bem arrumado, com suas calças boca fina e relógios de ouro no bolso. Coisas que jamais poderia imaginar possuir em sua pequena aldeia. Depois de cinco anos de muito trabalho e agitação, podia dizer que já estava adaptado a nova pátria. Mas na hora em que entregava seu corpo cansado á cama da pensão onde morava, a solidão vinha lhe perturbar. E a saudade, tão facilmente afastada pela primeira vez no convés do Salta, teimava agora em não ir embora. Naquela noite do verão de 1956, fechou os olhos pensando no vinho com ovos e açúcar que a mãe lhe dava quando ficava doente e adormeceu.
(Trecho do livro "Sacudindo o Pó da Estrada" de Antonio Ernesto Martins)