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Vinícius Romão |
Existe um contrato social, nos
bons termos de Rousseau, vigente em nossa civilização contemporânea que dá ao
estado a prerrogativa do monopólio do uso da força para garantia dos direitos
dos cidadãos e preservação do cumprimento de seus deveres. Podemos até alegar
que não somos signatários de nenhum contrato, mas esperamos que esse privilégio
estatal seja utilizado em nossa defesa sempre que nós, nossa família ou nossas
propriedades forem ameaçadas. Dessa forma, depositamos no braço armado do
estado com seu poder de polícia a confiança de que essa força seja exercida na
defesa do respeito aos direitos individuais e na preservação da ordem.
Mas o que fazer quando esse
contrato é quebrado como no caso da prisão do ator, vendedor e psicólogo
Vinícus Romão? Como não se indignar diante de uma injustiça praticada
justamente por aquele ator estatal que deveria defender-nos dessas
barbaridades? Vinícius após uma temporada de 16 dias na cadeia, preso
injustamente através de um procedimento policial ilegal, evita falar
diretamente em discriminação racial. Mas basta olharmos com um pouco mais de
atenção para nossa sociedade para verificarmos que nossa extrema desigualdade, econômica,
de oportunidades e de representações, tem raízes aprofundadas nas questões
racistas e no legado da escravidão.
O coturno na porta do barraco, o
tapa na cara nas vielas escuras das periferias, o desrespeito sistemático aos
direitos humanos, têm alvo certo e a truculência policial quase sempre é
disparada como um projétil teleguiado e programado para atingir a cor da
pobreza. E a cor da pobreza brasileira é essencialmente negra. Basta
andarmos pelo centro do Rio de Janeiro para verificarmos a grande predominância
de brasileiros negros na população invisível dos moradores de rua. Predominância
proporcionalmente inversa nas arquibancadas do Maracanã por ocasião da decisão
da Copa das Confederações.
O antropólogo Luiz Eduardo Soares
me contou que prepara um trabalho no qual, com o costumeiro brilhantismo de sua
mente acostumada a fazer conexões extraordinárias entre a academia e as
periferias, vai se debruçar sobre os fatores históricos e políticos que
nortearam a inserção do elemento negro na nação brasileira e que explicam, sem
justificar é claro, a divida social impagável que nosso país tem para com esses
cidadãos por tanto tempo submetidos a uma subcidadania.
Nesse aspecto histórico do
problema vejo que a meritocracia impregnada no pensamento do senso comum
brasileiro legitima não só a desigualdade como também determinadas ações do
estado marcadas pelo arbítrio. É comum o pensamento de que quem está socialmente
fragilizado chegou aonde fez por merecer. Não se empenhou, é fraco de caráter,
e merece castigo. As intransponíveis barreiras sociais e políticas que separam
as classes são vistas como obstáculos autênticos e válidos dentro dessa
meritocracia que admite preconceitos e orienta políticas públicas. Apoiados
nesse pensamento agem desde os justiceiros aos maus policias, abençoados por
grande parte das elites. Mas o mais cruel é que esse raciocínio não é monopólio
das elites e torna-se ainda mais vil quando é disseminado entre as populações
mais carentes, vitimas dessa lógica.

Vinícius Romão quebrou a barreira
da segregação racial velada que existe no Brasil. É um negro com curso
superior, trabalho formal e família estruturada. E talvez por isso tenha
conseguido sair desse episódio absurdo sem marcas mais profundas. Mas muitos
outros Vinícius ainda podem estar na cadeia, injustamente presos aos grilhões
sociais que substituíram as correntes dos senhores de escravos. E por serem
negros e nunca terem atuado em uma novela da TV Globo não irão causar espanto
aos meritocráticos de plantão.
Este texto,exprime com brilhantismo as nossas angústias.É fato que muitos outros Vinicius estão lá,estão nas prisões das calçadas,lançados a própria sorte,estão sendo obrigados a seguir um padrão europeu,conforme relatado na conversa entre o cobrador e o passageiro,para ter acesso a empregos melhores ou não ser abordado sempre.Meritocracia é quando todos tem a mesma chance,quando se chega junto a um determinado lugar e a partir dali,disputaremos as melhores vagas,seja lá onde for.Essa visão preconceituosa e equivocada de meritocracia não enriquece o debate sobre questões raciais,pelo contrário,fortalece os que não suportam conviver com os negros e recusam-se a pensar que o sangue negro corre em suas veias.O debate está na mesa,parabéns pelo belíssimo texto.
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