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Antonio Gomes Martins |
Assim como Hitler e Mussolini,
Salazar vinha do povo com um discurso populista, mas ao contrário destes, tinha
diploma universitário, havia lecionado na Universidade de Coimbra e seu projeto
de um regime estável para Portugal, não tinha em seu bojo nenhuma ideologia
revolucionária. Era um católico convicto que almejava um estado forte e fiel
aos dogmas da igreja católica. Antes de tudo era um antiliberal que repudiava o
socialismo, as lutas de classe, o sistema de partidos e o sufrágio universal.
Apoiado no exército instaurou um estado nacional cristão em Portugal, calcado
na família e nos valores católicos. Extremamente conservador, Salazar, teve o
mérito de manter a paz social em um país atrasado nos quesitos técnicos e com
uma economia incapaz de prover às novas gerações, esperanças de ascensão social
e de dias melhores. Nesse cenário o Brasil acenava como o sonhado Eldorado.
Como a terra promissora, celeiro de oportunidades de enriquecimento e receptivo
a chegada de mão de obra estrangeira. Nos anos 50 houve um grande aquecimento
nesse fluxo migratório, com os navios deixando o Porto e Lisboa apinhados de
emigrantes que, incentivados pelo próprio governo Salazar, desembarcavam em
terras brasileiras aos milhares na aventura do Novo Mundo. Geralmente viajava
primeiro o chefe da família. O pai ia à frente, para sondar o terreno e plantar
as bases econômicas que permitiriam a ida do resto da família. Mas também
partiam primeiro os mais jovens e solteiros detentores da energia necessária
para o trabalho pesado. Para poderem ser liberados pelo governo português e
aceitos pelo governo brasileiro, precisavam ter alguém no Brasil que se
responsabilizasse, através de uma Carta
de Chamada, pela tutela do imigrante em seus primeiros anos na antiga
colônia portuguesa. Caso algo de funesto acontecesse, como doença grave, falta
de adaptação a nova terra ou impossibilidade de seu auto-sustento, essa pessoa
teria que se encarregar das custas para a repatriação do cidadão português.
Naquele 08 de junho de 1951,
quase ninguém reparou em Antonio, que deixava o prédio da Secretaria Notarial
de Arouca, no edifício dos Paços Municipais. Ao seu lado estava seu filho varão
mais velho, nessa época com 16 anos. Como todo bom primogênito também carregava
o primeiro nome do pai. Nas mãos de Antonio – o filho -, estava um papel
datilografado, com algumas assinaturas e com o polegar de seu pai aposto no
verso. Nele podia-se ler:
“...compareceu o Senhor Antonio de Oliveira Martins, casado, alfaiate,
morador do lugar de Soutêlo, freguesia de Chave, deste concelho, pessoa cuja
identidade reconheço pela abonação das testemunhas deste acto, minhas
conhecidas. E por ele foi dito: Que, pelo presente instrumento, dá autorização
e pleno consentimento ao seu filho Antonio Gomes Martins, solteiro, menor, de
dezasseis anos de idade, sapateiro, convivente com ele outorgante no dito lugar
de Soutêlo, para se auzentar do Continente da República, para a cidade do Rio de
Janeiro, República dos Estados Unidos do Brasil, indo recomendado a pessoa de
sua inteira confiança e que se obrigou a prestar-lhe alimentos e a promover a
sua custa a sua repatriação, no caso de esta, por qualquer motivo se tornar
necessária...”
Antonio – o pai – era casado com
Margarida e tinham mais quatro filhos: Adélia – a mais velha de todos que havia
entrado para o convento -, Abílio – que mais tarde também embarcaria para o
Brasil -, Manoel e Sofia. A vida não era fácil na aldeia. Margarida criava
algumas galinhas e vendia ovos para ajudar no orçamento familiar, enquanto o
marido, embora alfaiate, também trabalhava na pequena quinta da família
plantando e colhendo alguns legumes e verduras para sua própria subsistência. A
aparência frágil de Margarida escondia um enorme coração. A tudo se calava e
nada parecia abalar sua fé em Deus e sua paciência com as dificuldades da vida.
Era uma mulher doce, agradável e resignada com sua sorte, que se dispunha a
cuidar dos pequeninos da aldeia, quando os pais iam para o trabalho no campo.
No início dos anos 80, quando o Pai Eterno a chamaria para o paraíso, uma cena
iria emocionar todos daquele lugar. Aquelas pessoas que, quando crianças ela
havia cuidado, rodeariam seu caixão tomadas pela dor, pela saudade e pela
gratidão. O velho Antonio era um homem rude e de poucas palavras, mas
reconhecidamente honesto e de boa índole. Fumava muito e também era adepto dos
prazeres do vinho.
O pequeno Antonio cresceu vendo a
dificuldade da família e sonhando com uma oportunidade de reverter aquele
cenário. Aos 14 anos chegou a trabalhar como ajudante do sapateiro local que
lhe ensinou o ofício, mas não era o suficiente. O espírito desbravador
português gritava em seu peito e o oceano lhe desafiava. Ouvia as histórias dos
conhecidos que haviam embarcado para o Brasil e tinham enriquecido. Vez por
outra, um desses brasileiros – como
eram chamados os retornados – chegava à aldeia ostentando sinais de
prosperidade e opulência tão distantes da realidade da pequena Soutêlo. Não
tardou o dia do pedido. Chegando perto do pai revelou seu desejo de migrar para
o Brasil. No Rio de Janeiro estava um tio seu que poderia lhe enviar a carta de chamada e acolhê-lo nos
primeiros tempos. O velho Antonio não disse nada de imediato. Pensou como iria
arranjar o dinheiro para a passagem do filho. Já havia estado no Brasil e sabia
que a vida nas Américas para um imigrante não era fácil. Conhecia também as
ciladas e armadilhas que a vida fora da pátria natal apresentava. Por outro
lado, sabia que pouco poderia fazer pelo filho em sua terra. Sem mostrar
nenhuma emoção, apenas perguntou ao filho:
- É isso mesmo que tu queres?
A resposta afirmativa veio como
uma flecha. Com a mãe chorando na porta de sua casa, que ele levaria mais de 30
anos para rever, Antonio se despediu dos irmãos e entrou com o pai em uma carrinha que o levou para a cidade do
Porto, onde embarcaria no navio Salta. Ainda no cais, o pai lhe deu as últimas
recomendações. O coração do pequeno Antonio batia cada vez mais forte a cada
passo que ele dava na ponte que o levava a bordo. No alto do convés, uma última
olhada para o seu Portugal antes de ser conduzido ao porão onde se localizavam
os alojamentos da terceira classe. O garoto de 16 anos agora estava sozinho em
sua aventura.
O Salta era o resultado de uma
conversão feita em um porta-aviões britânico que havia sido utilizado na
Segunda Guerra. Com o fim do conflito o navio havia sido devolvido pela Marinha
Real Britânica aos EUA, ficando inativo até 1949, quando foi comprado e
adaptado para o transporte de imigrantes pela companhia argentina Dodero Line. Tinha capacidade para 1.320
pessoas em instalações bastante modestas e compactas, cobrindo a linha Gênova-Buenos Aires, com escalas no Porto, Lisboa, Rio de Janeiro e Santos.
Durante os 16 dias da longa viajem, o jovem Antonio andava pelo convés mirando
a imensidão do mar, tentando controlar sua ansiedade que o fazia revisar o
horizonte de hora em hora a procura de um sinal da terra prometida. Lembrava
que o Tio Manuel, que o esperava no Rio de Janeiro, havia mandado o dinheiro
para a passagem e se sentia extremamente grato e ávido para cumprir a obrigação
de ressarcir a ele essa despesa a custo de muito trabalho. Era um jovem bonito
e forte. Suportou bem as agruras da viajem. Não podia sequer imaginar a
possibilidade de ficar doente. Na manhã do 16º dia de viajem, Antonio pulou da
pequena cama de sua cabine e correu para a proa do navio. Lá finalmente pode
avistar os contornos do famoso relevo do Rio de Janeiro, quando o Salta
adentrou a Baía de Guanabara. Pela primeira vez sentiu medo e saudades. Mas a
curiosidade afastou temporariamente esses sentimentos. Rapidamente reuniu seus
parcos pertences na pequena mala e, com a documentação em mãos, se preparou
para o desembarque no cais da Praça Mauá. Pisaria pela primeira vez em solo
brasileiro. Um solo onde ele plantaria suas raízes, constituiria sua família e
escreveria sua história a custo de muito suor, dissabores e alegrias, vitórias
e derrotas.
Estava encostado na murada da
embarcação aguardando o fim da manobra de atracação quando um companheiro de
viagem se aproximou também tomado pela euforia e pelo alívio do fim da jornada.
Enquanto conversavam animadamente, o homem puxou do bolso um maço de cigarros.
Acendeu um e ofereceu outro a Antonio. O jovem português aceitou a oferta e
acendeu seu primeiro cigarro. Enquanto baforava a fumaça resultante da
combustão do tabaco, sentiu-se um homem absoluto. Adulto para fumar e livre
para buscar o seu sustento naquele país que lhe acenava com um mar de
possibilidades. Lembrou da mãe que certamente ralharia com ele se o visse
fumando. Mas não se sentiu culpado. Estava longe demais para poder magoar
aquele coração materno com qualquer atitude. Não sabia, mas estava iniciando um
hábito que o acompanharia por mais de 40 anos.
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Passaporte |
Em terra, seu tio Manuel o
esperava com um abraço de boas vindas. Era um bom homem de saúde frágil. Tomaram
um táxi e partiram para a primeira habitação de Antonio no Brasil. O tio morava
na Rua Barão de São Felix, em um dos
vários sobrados de arquitetura portuguesa que formavam um corredor movimentado.
Armazéns, garagens, restaurantes, frigoríficos, muitas pensões e algumas vilas,
serviam de cenário para um ambiente que, às vezes, parecia ser um pedaço de
Portugal no Rio de Janeiro, tamanha era a população de imigrantes lusos naquela
região. A Barão de São Felix ficava
por trás do famoso prédio do relógio da Central
do Brasil, ao pé do Morro da
Providência e paralela a Avenida
Presidente Vargas. Era também uma região boêmia de grande agitação noturna.
Alimentados pelo tráfego dos passageiros na gare da estação ferroviária Pedro II, os cabarés e gafieiras fervilhavam
formando um eixo de pecado que rivalizava com a Lapa e a Praça Mauá. O
jovem Antonio logo faria o reconhecimento desse novo habitat e se adaptaria com
maestria à malandragem carioca, o que lhe renderia o apelido de Malandrote. Alcunha que lhe foi
atribuída por um amigo também imigrante, em substituição ao Arrebita que havia trazido da infância
na pequena aldeia portuguesa. Começou trabalhando como ajudante de sapateiro,
mas logo passou para atendente de balcão em um restaurante na mesma rua em que
morava. Em todo trabalho se destacava por sua determinação, seriedade,
responsabilidade e disposição para a labuta. Acabou atraindo a admiração e
amizade do português dono do estabelecimento que o promoveu a garçom. O cigarro
já era companheiro constante e logo recebeu o reforço da cerveja, da bagaceira
e do vinho, na tarefa de suportar a saudade de casa e de transitar pela face
mundana do Rio. O álcool o acompanharia até o último de seus dias. Também não
recusava uma boa briga, em uma época em que se brigava na mão ou, no máximo, com uma navalha. Chegou a ser salvo
por uma carteira de motorista no bolso da camisa, quando uma chave de fenda
inimiga já tomara o caminho de seu coração. Mostrava com orgulho a carteira de
capa grossa, perfurada pelo artefato pontudo. Assim conseguiu pagar a passagem
ao seu tio que morreria dois anos após a sua chegada. Numa terra distante e
estranha, em meio a algumas xenofobias e hostilidades dos brasileiros, estava
se saindo bem. Andava bem arrumado, com suas calças boca fina e relógios de
ouro no bolso. Coisas que jamais poderia imaginar possuir em sua pequena
aldeia. Depois de cinco anos de muito trabalho e agitação, podia dizer que já
estava adaptado a nova pátria. Mas na hora em que entregava seu corpo cansado á
cama da pensão onde morava, a solidão vinha lhe perturbar. E a saudade, tão
facilmente afastada pela primeira vez no convés do Salta, teimava agora em não
ir embora. Naquela noite do verão de 1956, fechou os olhos pensando no vinho
com ovos e açúcar que a mãe lhe dava quando ficava doente e adormeceu.
(Trecho do livro "Sacudindo o Pó da Estrada" de Antonio Ernesto Martins)
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