Crack
: Nada é tão ruim que não possa piorar.
Com o lançamento de meu
livro “Sacudindo o Pó da Estrada” e de meu filme “O Brilho”, tenho participado
de palestras, seminários e debates que abordam a questão das drogas, já que
essas duas obras tratam através de linguagens distintas desse mesmo tema, tão
presente na pauta de nossa sociedade. Passados quatro anos nos quais me dediquei
a pesquisar esse assunto a partir da minha experiência pessoal no vício, o
desafio de tentar entender o uso e o abuso de drogas ainda me fascina e me
provoca diversas reflexões.
Desde os primórdios da
civilização a humanidade se relaciona com algum tipo de droga ou alucinógeno,
seja em suas atividades místicas ou religiosas, seja em rituais ou costumes
tradicionais. A partir do movimento da contracultura dos anos 60, o consumo de
drogas tomou ares revolucionários e de contestação, criando vínculo e afinidade
com a juventude que possui em sua essência essas mesmas características.
No Brasil, nessa mesma
época, imperava a ditadura militar que com seus aparelhos repressivos inibia
qualquer tipo de rebeldia ou de transgressão. No entanto, a despeito das
inúmeras políticas de prevenção e de combate às drogas, deflagradas no mundo
inteiro, o consumo e a produção continuaram aumentando vertiginosamente dentro
e fora de nosso país. No final dos anos 70, com a abertura política, a anistia,
o movimento pelas diretas e os ares de liberdade que voltavam a soprar por
nossas terras, cria-se um cenário propício para a ampliação da distribuição de
entorpecentes e entra em cena de maneira mais abrangente uma droga que, até
então, se mantinha elitizada nas classes mais altas e em alguns segmentos
artísticos de vanguarda: a cocaína.
Insuflada no rastro da onda
“disco” que varreu o mundo, a cocaína baixou de preço, aumentou sua oferta e
ofereceu aos consumidores outro tipo de “viagem”. Uma droga urbana, “nervosa”,
extremamente compulsiva e inquieta que, de modo devastador, alterou a rotina dos
jovens consumidores e até mesmo a dos traficantes que a comercializavam,
através de seus efeitos antissociais que inibem não só o sono ou a fome, mas também
as relações de ternura e as conexões com a espiritualidade.

No meio disso tudo, um
enorme conflito se estabelece. Um conflito certamente inerente à natureza
humana e travado desde os tempos mais remotos: o conflito do homem com ele
mesmo. Potencializado no conflito do viciado, que vê rapidamente sua vontade
própria se esvair e mergulha numa rotina de escravidão e degradação
existencial. Como isso ocorre, como é feita essa escolha diariamente, como se
comporta essa mente que percebe que está se prejudicando, mas ao mesmo tempo
não consegue conceber sua vida sem a droga são perguntas que ainda hoje
estimulam diversos estudos e pesquisas e que, muito recentemente, conseguiram
inserir no debate da sociedade a ideia da “dependência química” como uma doença
e não como uma deficiência de caráter. No entanto uma significativa parcela da
população ainda encara o problema sobre a ótica tradicional que marginaliza e
criminaliza o usuário.
Muitas outras questões ainda
permanecem obscuras e suas complexidades se acentuaram com a chegada de novas
drogas, as sintéticas e principalmente o crack, e com o amplo debate mundial em
torno da descriminalização e da legalização das drogas hoje consideradas
ilícitas. Debate esse movido pela constatação do total fracasso da chamada
guerra contra as drogas, deflagrada no planeta sob o comando dos EUA.
No Brasil a partir dos anos
90, as crackolandias, inicialmente em São Paulo e depois no Rio de Janeiro,
estampadas nos jornais e na TV revelam imagens fortes de grupos de viciados que
se reúnem a luz do dia e a vista dos passantes para consumir essa droga
derivada da cocaína. O crack oferece a mesmas sensações da cocaína através de
sua combustão e da absorção através dos pulmões, potencializando sua ação e
tornando o consumidor viciado em um curtíssimo espaço de tempo. Seu baixo preço
também é fator primordial para a difusão da droga entre os pobres e o quadro de
dependência dessa droga é de dificílima reversão. Para aqueles, como eu, que
acreditavam ter conhecido na cocaína o estágio máximo da escravidão provocada
pelas drogas, o crack chega para provar que nada é tão ruim que não possa
piorar.
Atualmente o crack é
considerado por muitos uma epidemia no Brasil e seus efeitos nefastos alcançam
o interior dos estados, as pequenas cidades e as periferias com a mesma
agilidade que vitimam também os condomínios de classe média alta das grandes
capitais. A necessidade da droga que passa a pautar o comportamento do
dependente leva-o a se desconectar de maneira radical de seus laços afetivos e psicossociais,
infringindo perdas significativas. Rapidamente o usuário está incapacitado de
cumprir seus papeis sociais e se sente impelido em frequentar esses grupos que
se reúnem para o consumo diário e compulsivo da droga.

Os motivos que levam um indivíduo
a se tornar dependente ou não de alguma substância ou comportamento são inúmeros
e diversificados, variando em combinações de acordo com o sujeito, sua história
de vida ou o ambiente que o cerca. Acredito que é hora de mergulharmos nesse
desafio de entender e desvendar as causas e o mecanismo de construção de um
dependente ao invés de simplesmente demonizarmos as drogas e colocarmos na
conta dos dependentes os problemas sociais que nos afligem.
O patrocínio a pesquisas
sérias no campo da neurociência que possam definitivamente esclarecer o impacto
real de cada substancia no cérebro humano e suas consequências também são
urgentes, para desconstruir mitos e tabus e pautar agendas qualificadas de
discussão pública. Iniciativas humanizadoras como a implementada recentemente
pelo programa “Operação de Braços Abertos” da prefeitura
de São Paulo são louváveis, apesar da desastrosa e estranha ação do Denarc.
Como vemos, esse é um
assunto que está longe de obter um consenso e os questionamentos e reflexões
tanto na esfera pública como particular necessitam se despir de conceitos
estabelecidos previamente para poder atacar o núcleo duro da questão.
Parabéns Grande Ernesto, Mais uma grande contribuição p/ os que precisam!
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