
“HOJE JOGUEI TRÊS HORAS DE MINHA VIDA NO LIXO” OU “RÉQUIEM DE UMA CIDADE SEM SENTIDO”
No rádio do carro mais uma propaganda. De carro. Além do freio ABS, do limpador inteligente, teto solar automático, GPS, computador de bordo e o raio que o parta, o que chamava a atenção eram as trocentas prestações que facilitavam a compra daquele fetiche capitalista, bastião da promissora política econômica do governo. Política econômica alicerçada no consumo da classe média emergente e do acesso dos sempre mais pobres a essa classe enigmática até para Marx.
Sexta feira no Rio de Janeiro e
eu já previa o que me esperava. Ou achava que previa. Minhas táticas e
planejamentos para evitar me deslocar pela minha cidade em horários de rush e
em sextas feiras haviam sido derrotadas pela necessidade inadiável de cumprir
compromissos profissionais em Ipanema, uns 40 km distante do subúrbio carioca
onde moro. Onde milhões moram. Às 16h45min entrei em meu carro estacionado no
entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas. Tive que estacionar ali e andar três
quilômetros para ir e mais três para vir dando graças a Deus por conseguir uma
vaga, tão “pertinho”. E às 17h45min ainda não havia conseguido chegar ao Túnel
Rebolsas. Em um hora havia me deslocado, ou melhor, me arrastado uns sete
quilômetros. Eu e meu carro. Meu eletrodoméstico ultrapassado e inútil. Troquei
de estação e depois de flashs alarmantes sobre a situação caótica do transito
em toda a cidade, mandadas por um repórter aéreo em seu helicóptero, novamente
o mesmo comercial de carro. Os mesmos avanços tecnológicos daquela ilusão de
metal e as mesmas trocentas
prestações. E sem entrada. Do meu lado um carro com as mesmas modernidades e...
parado, igualzinho ao meu popular com motor humilde e sem vidro elétrico. Nós
dois pasteurizados naquela massa barulhenta de aço e borracha. Lentos,
agonizantes, agoniados.
Dentro do túnel a tortura é mais
nazista. Lembra o que ouvimos falar da câmara de gás de Sobidor. Somos
prisioneiros engavetados em nossos casulos automotores rodando lentamente para
tentar chegar. Simplesmente chegar é o que queremos. Mais meia hora para sair
daquele buraco a ver a luz do sol que a essa altura já desistia dessa loucura e
fugia por de trás do Corcovado ou sei lá por onde. Rio cidade de gente feliz.
Diz a campanha da prefeitura de braços dados com o governo do estado e o
federal, dançando juntos a sinfonia da nova ordem mundial e suas economias
promissoras, livres das crises do velho mundo.
O Rio tem urgência. Urgência de
construir estádios. Urgência de atender aos prazos dos grandes eventos.
Urgência em aprovar projetos e orçamentos que farão os cariocas mais felizes e
as empreiteiras e campanhas eleitorais mais opulentas. Mas o transito em volta
de mim não tem a mínima urgência. Escorre pegajoso pelo asfalto escuro como um
catarro grosso e decadente. Está retido na falta de transporte público decente,
na ausência de investimentos na malha ferroviária e no projeto esdrúxulo de um metrô
que se expande esticando as mesmas linhas com a principal finalidade de evitar
uma nova licitação e uma possível troca da atual concessionária. Interesses
pragmáticos da nossa democracia de coalizão. A educação e a saúde também não
tem urgência. Esperam nas filas dos hospitais e nas salas de aula sem
professores. Enquanto isso o sujeito ao meu lado, eu seu carro muderno, parece à beira de um ataque de
nervos. Todos estão prontos para matar ou morrer ao mínimo roçar de para
choques.
Eu tento me controlar, mas a
musculatura de minha perna dá sinais de falência múltipla esgotada pelo eterno
acelera, freia, engrena. Uma hora e meia depois já estou na Linha Vermelha, aquela
via expressa (expressa? piada de mal gosto!) criada para desafogar a Avenida
Brasil. E aquela procissão neurótica não
dá sinais de terminar, aumentando desleixadamente o consumo de combustível e
agredindo covardemente a natureza que, embora não saiba se defender, já prepara
sua vingança.
Nada faz sentido. A metrópole não
faz sentido em sua desumana imobilidade urbana. Assim como a sociedade
industrial não fazia sentido para os flaneurs
do século XVIII tentando entender tanta desigualdade e miséria. Queria ver eles
flanarem na Linha Vermelha. E o filho
da puta do comercial de carro outra vez. Temos que vender carros. Os carros dão
status e fazem os eleitores felizes. Seus votos farão seus representantes
andarem de helicópteros e jatinhos sem engarrafamentos.
Três horas depois, ás 19h45min
estou chegando em casa. Três horas de minha vida jogadas no lixo. Seis de ida e
volta por dia útil. (útil? outra piada infame!) 30 por semana. 120 por mês. 1440
horas por ano. Em cinquenta anos 72.000 horas. 3.000 dias de vida jogados no
lixo de uma cidade sem sentido.
Paro de fazer contas e, esgotado,
rezo agradecendo a São Home Oficce
que tem me abençoado nos últimos anos e mando meus melhores pensamentos para
minha editora Noga que abandonou o cárcere privado coletivo em que vivemos pra
morar no seu Vale do Sossego. Longe dessa cidade que conseguiu embaralhar
palavras de significado tão antagônicos como “privado” e “coletivo” nessa
lógica da tal urgência.
Também vivo este "inferno" todos os dias, não tem pra onde correr! Isto ajuda a diminuir a nossa qualidade de vida!
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