terça-feira, 21 de janeiro de 2014

“HOJE JOGUEI TRÊS HORAS DE MINHA VIDA NO LIXO” OU “RÉQUIEM DE UMA CIDADE SEM SENTIDO”



“HOJE JOGUEI TRÊS HORAS DE MINHA VIDA NO LIXO” OU “RÉQUIEM DE UMA CIDADE SEM SENTIDO”

No rádio do carro mais uma propaganda. De carro. Além do freio ABS, do limpador inteligente, teto solar automático, GPS, computador de bordo e o raio que o parta, o que chamava a atenção eram as trocentas prestações que facilitavam a compra daquele fetiche capitalista, bastião da promissora política econômica do governo. Política econômica alicerçada no consumo da classe média emergente e do acesso dos sempre mais pobres a essa classe enigmática até para Marx.

Sexta feira no Rio de Janeiro e eu já previa o que me esperava. Ou achava que previa. Minhas táticas e planejamentos para evitar me deslocar pela minha cidade em horários de rush e em sextas feiras haviam sido derrotadas pela necessidade inadiável de cumprir compromissos profissionais em Ipanema, uns 40 km distante do subúrbio carioca onde moro. Onde milhões moram. Às 16h45min entrei em meu carro estacionado no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas. Tive que estacionar ali e andar três quilômetros para ir e mais três para vir dando graças a Deus por conseguir uma vaga, tão “pertinho”. E às 17h45min ainda não havia conseguido chegar ao Túnel Rebolsas. Em um hora havia me deslocado, ou melhor, me arrastado uns sete quilômetros. Eu e meu carro. Meu eletrodoméstico ultrapassado e inútil. Troquei de estação e depois de flashs alarmantes sobre a situação caótica do transito em toda a cidade, mandadas por um repórter aéreo em seu helicóptero, novamente o mesmo comercial de carro. Os mesmos avanços tecnológicos daquela ilusão de metal e as mesmas trocentas prestações. E sem entrada. Do meu lado um carro com as mesmas modernidades e... parado, igualzinho ao meu popular com motor humilde e sem vidro elétrico. Nós dois pasteurizados naquela massa barulhenta de aço e borracha. Lentos, agonizantes, agoniados.

Dentro do túnel a tortura é mais nazista. Lembra o que ouvimos falar da câmara de gás de Sobidor. Somos prisioneiros engavetados em nossos casulos automotores rodando lentamente para tentar chegar. Simplesmente chegar é o que queremos. Mais meia hora para sair daquele buraco a ver a luz do sol que a essa altura já desistia dessa loucura e fugia por de trás do Corcovado ou sei lá por onde. Rio cidade de gente feliz. Diz a campanha da prefeitura de braços dados com o governo do estado e o federal, dançando juntos a sinfonia da nova ordem mundial e suas economias promissoras, livres das crises do velho mundo.
O Rio tem urgência. Urgência de construir estádios. Urgência de atender aos prazos dos grandes eventos. Urgência em aprovar projetos e orçamentos que farão os cariocas mais felizes e as empreiteiras e campanhas eleitorais mais opulentas. Mas o transito em volta de mim não tem a mínima urgência. Escorre pegajoso pelo asfalto escuro como um catarro grosso e decadente. Está retido na falta de transporte público decente, na ausência de investimentos na malha ferroviária e no projeto esdrúxulo de um metrô que se expande esticando as mesmas linhas com a principal finalidade de evitar uma nova licitação e uma possível troca da atual concessionária. Interesses pragmáticos da nossa democracia de coalizão. A educação e a saúde também não tem urgência. Esperam nas filas dos hospitais e nas salas de aula sem professores. Enquanto isso o sujeito ao meu lado, eu seu carro muderno, parece à beira de um ataque de nervos. Todos estão prontos para matar ou morrer ao mínimo roçar de para choques. 

Eu tento me controlar, mas a musculatura de minha perna dá sinais de falência múltipla esgotada pelo eterno acelera, freia, engrena. Uma hora e meia depois já estou na Linha Vermelha, aquela via expressa (expressa? piada de mal gosto!) criada para desafogar a Avenida Brasil.  E aquela procissão neurótica não dá sinais de terminar, aumentando desleixadamente o consumo de combustível e agredindo covardemente a natureza que, embora não saiba se defender, já prepara sua vingança.

Nada faz sentido. A metrópole não faz sentido em sua desumana imobilidade urbana. Assim como a sociedade industrial não fazia sentido para os flaneurs do século XVIII tentando entender tanta desigualdade e miséria. Queria ver eles flanarem na Linha Vermelha. E o filho da puta do comercial de carro outra vez. Temos que vender carros. Os carros dão status e fazem os eleitores felizes. Seus votos farão seus representantes andarem de helicópteros e jatinhos sem engarrafamentos.
Três horas depois, ás 19h45min estou chegando em casa. Três horas de minha vida jogadas no lixo. Seis de ida e volta por dia útil. (útil? outra piada infame!) 30 por semana. 120 por mês. 1440 horas por ano. Em cinquenta anos 72.000 horas. 3.000 dias de vida jogados no lixo de uma cidade sem sentido.


Paro de fazer contas e, esgotado, rezo agradecendo a São Home Oficce que tem me abençoado nos últimos anos e mando meus melhores pensamentos para minha editora Noga que abandonou o cárcere privado coletivo em que vivemos pra morar no seu Vale do Sossego. Longe dessa cidade que conseguiu embaralhar palavras de significado tão antagônicos como “privado” e “coletivo” nessa lógica da tal urgência.

Um comentário:

  1. Também vivo este "inferno" todos os dias, não tem pra onde correr! Isto ajuda a diminuir a nossa qualidade de vida!

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