quarta-feira, 2 de abril de 2014

COCAÍNA: O PRIMEIRO ENCONTRO



Não era “Woodstock”, mas a história do jovem americano que conhece um grupo de hippies antes de se alistar para lutar no Vietnã era o que mais se aproximava de suas expectativas naquele momento. A sessão já havia começado e o cinema estava quase vazio. Foram direto para o banheiro pomposo de louças e azulejos azul marinho que subiam até a metade da parede, fechando o ambiente de maneira claustrofóbica como uma espécie de sarcófago esterilizado. Entraram juntos em um dos reservados que ocultavam os vasos sanitários e fecharam a porta. Nervoso e desajeitado Lelo retirou sua identidade da carteira e o papelote do bolso. As embalagens da brizola daquele tempo eram quase peças de artesanato. Um pequeno pedaço de filme de polietileno transparente medindo uns 4 cm² envolvia o pó entrando em contato direto com a droga, tentando protegê-la da sua maior ameaça: a umidade. Um pedaço um pouco maior de papel vegetal agregava sua rigidez e encorpava a embalagem, abraçando o pó e o polietileno, dobrando-se ao meio e unindo suas beiradas que recebiam mais duas dobras estreitas no sentido horizontal. Depois, as extremidades laterais eram dobradas para a parte traseira, formando uma espécie de minúsculo envelope retangular. Por fim um grampo de metal dava a inviolabilidade necessária.  Lelo livrou-se do grampo com a ponta da unha do polegar da mão direita e desfez as dobras do papel vegetal formando uma canaleta. O pó afrouxou-se na embalagem enquanto Lelo espalmava seu documento plastificado na mão esquerda. Com a direita entornou o conteúdo do papelote em cima da identidade. Seu rosto adolescente estampado na fotografia ficou semi-encoberto pelo pó branco e cristalino. Pediu para Toninho segurar o documento com cuidado enquanto procurava no bolso a cédula de papel mais novo que, enrolada, se transformou em um canudo. Toninho tomou em suas mãos aquele minúsculo monte nevado e encarou bem de perto a face do diabo moído, que ali descansando em sua mão não pareceu nem um pouco assustador. Enfim a cocaína o havia encurralado naquele pequeno cubículo, mas ele se sentia no controle absoluto da situação. Não havia tempo para formalidades naquela apresentação. O canudo passou para as mãos de Toninho e a carteira voltou para a esquerda de Lelo que com outro documento também plastificado na destra, espalhou a brizola pela superfície de sua identidade em duas carreiras irregulares e mal alinhadas. Toninho media e registrava cada movimento do amigo. Lelo pegou o canudo de sua mão, cravou-o dentro de sua narina direita e aproximou a carteira de seu rosto. Com um movimento rápido como o bote de uma serpente, golpeou a pequena rapa com a ponta livre do canudo fazendo a cocaína desaparecer por dentro dele. Em seguida estendeu a carteira e passou o canudo para Toninho que imitou os movimentos do amigo. Seu desempenho foi compatível com o de um iniciante que era. O poder de sucção de sua primeira investida não foi suficiente para sorver todo o conteúdo da trilha que lhe havia sido destinada. Algumas partículas não conseguiram se agarrar a mucosa de seu nariz e retornaram pelo canudo para se espalharem novamente pela fotografia de Lelo, que decidiu orientá-lo enquanto juntava o que estava espalhado para auxiliar o amigo e sair logo daquele banheiro deserto e tétrico.


- Tampa a esquerda.

Toninho tampou com o polegar a sua narina esquerda e concentrou sua força na direita para a segunda tentativa. Dessa vez a viagem do pó transcorreu sem imprevistos e o restante da cocaína foi se acomodar no tecido irrigado por pequenos vasos que revestiam a parte interna do nariz mouro daquele luso descendente. A cocaína iniciava a sua primeira turnê pela corrente sanguínea de Toninho na busca por seu cérebro ainda virgem de seus efeitos. Toninho sentiu uma pequena ardência no nariz que não chegou a ser insuportável, pois durou poucos segundos. Depois um gosto amargo de éter escorreu por sua garganta fazendo-a ficar mais apertada. Lelo passou os dedos sobre os restos aderidos na plastificação de sua identidade e esfregou-os nas gengivas superiores. Saíram do banheiro e foram se sentar na sala de exibição, aonde o filme já chegava quase a metade. Toninho sentiu suas gengivas estranhamente dormentes como costumavam ficar quando eram anestesiadas na cadeira do dentista. A cada nova seqüência que se desenrolava na tela, teciam comentários diversos que emendavam em outros assuntos desconexos. Em poucos minutos estavam falando sem parar num ritmo frenético demais para possibilitar que qualquer atenção fosse destinada à película. Um prazer de difícil descrição e uma euforia repentina tornou impossível ficarem ali sentados. Umas vontades de iniciar alguma coisa e se mover para algum lugar se antecipavam a qualquer esboço de relaxamento ou concentração. Levantaram-se e tentaram assistir ao filme de pé, encostados em um pequeno parapeito que balizava a última fileira de poltronas, enquanto continuavam conversando. Embora com o cinema praticamente vazio, julgaram que seu falatório estava incomodando a meia dúzia de espectadores espalhada pela grande sala. Sentiram-se observados e censurados por eles embora a presença dos dois não pudesse ser percebida na penumbra da sala escura. Isso foi mais do que suficiente para decidirem ir embora antes do fim da sessão. Na Avenida Princesa Isabel pegaram o primeiro ônibus que os deixou na Leopoldina para embarcarem em outro que os levaria para casa.
 
Os assuntos tornavam-se subitamente interessantes e rapidamente também eram substituídos por outros em propostas e compromissos que projetavam várias realizações no futuro de curto e médio prazo daqueles dois. Sentiam-se prontos para aceitar qualquer desafio e particularmente integrados àquela energia essencialmente urbana que a metrópole trocava com eles. Lelo falou sobre uma novidade que iria revolucionar o mercado fonográfico. Um pequeno disco plástico, com apenas um lado tocável, estaria em breve substituindo as pesadas bolachas de vinil com uma qualidade de som infinitamente superior. Não haveria mais a necessidade da troca de agulhas nos aparelhos de reprodução sonora. O “compact disk”, ou CD, chegaria para decretar a morte dos LPs. Toninho duvidou. Debochou do amigo e disse ser impossível trocar seus álbuns de capas grandes por qualquer engenhoca moderna. Com certeza essa novidade não iria dar certo. 

(trecho do livro "Sacudindo o Pó da Estrada" de Antonio Ernesto Martins)

sexta-feira, 14 de março de 2014

O HOMEM INVISÍVEL

O poder da invisibilidade tem permeado o imaginário humano desde tempos remotos. Os espíritos invisíveis ou os super heróis dos desenhos animados dotados desse super poder, fascinaram e ainda fascinam muita gente das mais diversas origens e idades. Essa capacidade de ver sem ser visto, essa possibilidade de agir sem ser detectado aparece recorrentemente como um recurso útil para os mais diversos projetos, mas também pode acarretar dilemas e dificuldades para quem lançar mão dessa habilidade. Do romance de Herbert George Wells, “O Homem Invisível” (1897), passando pelo seriado de TV americano dos anos 60 com o mesmo nome até diversos personagens de filmes de animação mais recentes, a capacidade de se tornar invisível atrai atenção e desperta a imaginação.
Hoje, nas nossas metrópoles, vivemos outras invisibilidades mais complexas e menos glamurosas. Nosso olhar, submetido a um jorro constante e exagerado de imagens e informações que nos chegam das mais variadas fontes e sem que necessitemos da maioria delas, acaba nos obrigando a privilegiar o foco em detrimento das periferias do campo visual. Assim a todo momento estamos olhando sem ver, visualizando sem enxergar. Nas ruas, no computador, em casa, diante da TV ou até mesmo defronte a uma obra de arte, perdemos várias informações que não são processadas devidamente em nosso cérebro devido a essa enxurrada imagética.  Mas nossa seleção visual muitas vezes também tem contornos sociais, políticos e ideológicos e é nesse ponto que gostaria de propor uma reflexão sobre a foto que acompanha esse texto.

Essa foto foi tirada por mim em uma praça do bairro do subúrbio carioca onde moro. Nossa cidade, como muitas outras espalhadas pelo Brasil e pelo mundo, vive o drama da dependência química que, principalmente através do crack, tornou “visível” um problema social terrível e de difícil enfrentamento. As crackolandias na medida em que se estabelecem a beira dos grandes corredores urbanos ou são objeto das matérias sensacionalistas da mídia, obrigam nosso olhar. Mas será que conseguimos ver?
Passando por essa praça e a partir do meu interesse por essa questão identifiquei nessa pessoa, coberta por um cobertor sujo em um calor de mais de 30º C, uma dessas vítimas da nossa invisibilidade seletiva e social. Passamos diariamente por personagens como esse, mas nesse caso, a invisibilidade e o anonimato parecia claramente ser uma opção do sujeito e não objeto de nossa indiferença ou preconceito. Debaixo daquele cobertor, uma história, uma vida, um irmão ou irmã, estava se preservando do olhar da sociedade. Provavelmente por não querer ser visto, julgado e analisado por essa mesma sociedade que não o incluí nem o aceita. Mas que o julga, o estuda, o recolhe para centros de triagem, tenta em vão afastá-lo das drogas e das ruas, mas que não tem capacidade de combater diretamente as causas e as distorções que provocam tanta desigualdade e que jogam milhões nessa mesma condição de indigência.
Notei que a pessoa manuseava algum objeto próximo a sua boca. Os movimentos ocultos de seus braços denunciavam essa ação. Um questionamento ético sobre se eu tinha o direito ou não de tirar aquela foto me sobreveio. Mas diante do anonimato preservado no ângulo que escolhi, resolvi fazer o registro com meu celular e chegando em casa postei nas redes sociais pedindo simplesmente que as pessoas comentassem o que viam naquela cena. A primeira constatação sobre esse tipo de invisibilidade veio no baixíssimo número de pessoas que se pronunciaram aceitando o desafio. Como se aquele cobertor realmente tivesse poderes sobrenaturais de tornar o cidadão e suas mazelas invisíveis. Certamente outras fotos publicadas que apresentassem situações esdrúxulas ou envolvessem fofocas de celebridades receberiam cem vezes mais posts. Dos poucos que reagiram a minha provocação uma pequena parte reproduziu o senso comum com observações infelizes carregadas de preconceitos referindo-se mal disfarçadamente ao indivíduo oculto pelo cobertor como marginal, fraco de caráter, inimigo e perigoso. Outros maldisseram as drogas e o Brasil e classificaram a cena de triste, angustiante, inadmissível. Os mais espirituais decretaram que só Deus teria a resposta para isso e os espirituosos definiram como sensação de vazio.  Os colegas do Laboratório de Antropologia Audiovisual da UFRJ reagiram de maneira mais qualificada e científica evitando os estereótipos, mas todos enxergavam naquela representação iconográfica um problema social grave.  Mas seria o crack, ou qualquer outro abuso de droga, a população de rua e os eventuais delitos cometidos, os problemas sociais? Ou estes seriam os efeitos dos verdadeiros problemas sociais implícitos na desigualdade crônica e exagerada de nossa sociedade, que mantém a lógica consumista e individualista de nosso mundo? Problema complexo demais para que eu pudesse chegar a uma conclusão definitiva ali diante daquele irmão ou irmã com o cobertor na praça, principalmente imprensado como eu estava por um compromisso profissional que para mim era inadiável.
Andei uns cinquenta metros já de posse da foto na memória de meu celular, mas me incomodei com minha distancia e frieza. Se as drogas na sociedade contemporânea é um assunto que me interessa e sobre o qual me debruço com minha literatura e meu cinema, não é suficiente e justo que eu, do alto de minha arrogância passe por aquele sujeito como se ele fosse invisível. Simplesmente usurpando sua imagem para minhas reflexões. Precisava ver seu rosto, ouvir sua história, oferecer ajuda.
Mesmo sabendo que o tempo que eu, dentro das prioridades da minha própria sobrevivência, entendia ter como disponível para aquela abordagem provavelmente seria insuficiente para qualquer efeito positivo e duradouro, voltei e me aproximei desse cidadão ou cidadã. Agora pela frente, para me esquivar dos poderes de invisibilidade do cobertor. Fui tentando me preparar para qualquer reação, mesmo agressiva, que poderia vir daquele que seria invadido por mim e surpreendido em uma prática recriminada pela sociedade.


Diante dele ou dela, os poderes do cobertor continuaram ocultando seu rosto. Mas a sua ação me foi revelada: ele ou ela estava comendo um pão velho e sujo. Tirava pequenos pedaços e os levava a boca. Envergonhado e confuso fui embora sem me sentir capaz, naquele momento, de ultrapassar aquela fronteira da invisibilidade social que eu acabara de ajudar a fortalecer. 

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A MERITOCRACIA NEGRA

Vinícius Romão
Existe um contrato social, nos bons termos de Rousseau, vigente em nossa civilização contemporânea que dá ao estado a prerrogativa do monopólio do uso da força para garantia dos direitos dos cidadãos e preservação do cumprimento de seus deveres. Podemos até alegar que não somos signatários de nenhum contrato, mas esperamos que esse privilégio estatal seja utilizado em nossa defesa sempre que nós, nossa família ou nossas propriedades forem ameaçadas. Dessa forma, depositamos no braço armado do estado com seu poder de polícia a confiança de que essa força seja exercida na defesa do respeito aos direitos individuais e na preservação da ordem.
Mas o que fazer quando esse contrato é quebrado como no caso da prisão do ator, vendedor e psicólogo Vinícus Romão? Como não se indignar diante de uma injustiça praticada justamente por aquele ator estatal que deveria defender-nos dessas barbaridades? Vinícius após uma temporada de 16 dias na cadeia, preso injustamente através de um procedimento policial ilegal, evita falar diretamente em discriminação racial. Mas basta olharmos com um pouco mais de atenção para nossa sociedade para verificarmos que nossa extrema desigualdade, econômica, de oportunidades e de representações, tem raízes aprofundadas nas questões racistas e no legado da escravidão.
O coturno na porta do barraco, o tapa na cara nas vielas escuras das periferias, o desrespeito sistemático aos direitos humanos, têm alvo certo e a truculência policial quase sempre é disparada como um projétil teleguiado e programado para atingir a cor da pobreza. E a cor da pobreza brasileira é essencialmente negra.   Basta andarmos pelo centro do Rio de Janeiro para verificarmos a grande predominância de brasileiros negros na população invisível dos moradores de rua. Predominância proporcionalmente inversa nas arquibancadas do Maracanã por ocasião da decisão da Copa das Confederações.  
O antropólogo Luiz Eduardo Soares me contou que prepara um trabalho no qual, com o costumeiro brilhantismo de sua mente acostumada a fazer conexões extraordinárias entre a academia e as periferias, vai se debruçar sobre os fatores históricos e políticos que nortearam a inserção do elemento negro na nação brasileira e que explicam, sem justificar é claro, a divida social impagável que nosso país tem para com esses cidadãos por tanto tempo submetidos a uma subcidadania.
Nesse aspecto histórico do problema vejo que a meritocracia impregnada no pensamento do senso comum brasileiro legitima não só a desigualdade como também determinadas ações do estado marcadas pelo arbítrio. É comum o pensamento de que quem está socialmente fragilizado chegou aonde fez por merecer. Não se empenhou, é fraco de caráter, e merece castigo. As intransponíveis barreiras sociais e políticas que separam as classes são vistas como obstáculos autênticos e válidos dentro dessa meritocracia que admite preconceitos e orienta políticas públicas. Apoiados nesse pensamento agem desde os justiceiros aos maus policias, abençoados por grande parte das elites. Mas o mais cruel é que esse raciocínio não é monopólio das elites e torna-se ainda mais vil quando é disseminado entre as populações mais carentes, vitimas dessa lógica.
Assim fiquei surpreso, mas resignado, quando ouvi em uma conversa entre um trocador de ônibus e um passageiro – ambos negros – a seguinte afirmação: “Também né?...um negão na rua de noite...com aquele cabelo...tá pedindo pra rodar, né?”


Vinícius Romão quebrou a barreira da segregação racial velada que existe no Brasil. É um negro com curso superior, trabalho formal e família estruturada. E talvez por isso tenha conseguido sair desse episódio absurdo sem marcas mais profundas. Mas muitos outros Vinícius ainda podem estar na cadeia, injustamente presos aos grilhões sociais que substituíram as correntes dos senhores de escravos. E por serem negros e nunca terem atuado em uma novela da TV Globo não irão causar espanto aos meritocráticos de plantão. 

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

We can...nabis or not?


Já vão longe os tempos em que a maconha era vendida livremente nas farmácias do mundo. No Brasil ela foi proibida em 1932, mas antes dessa proscrição comandada pelo governo Vargas, podia ser encontrada nas drogarias do Centro da então Capital Federal em diversas apresentações. Como na forma dos Cigarros Índios , indicados para “ Asthma, Catarrhos e Insomnia” e com propagado efeito reparador para “dificuldade em respirar, roncadura” e até para os “flatos”.
De Nixon que pautou sua campanha a presidência dos EUA em uma recuperação incondicional dos bons costumes e na chamada “guerra às drogas”, até Obama que admitiu ter dado uns tapas na erva e, recentemente, declarou que a marijuana não é mais maléfica que o álcool, muita água passou por debaixo da ponte, muita goma umedeceu as cedas, muita fumaça foi jogada nas cacholas. E apesar da decantada guerra as drogas que consumiu bilhões de dólares e jogou na cadeia milhões de pessoas, em sua maioria negros e pobres, a maconha continua sendo a droga ilícita mais usada em todo o mundo.
Uma forte corrente anti-proibicionista parece varrer o mundo com argumentos defendidos apaixonadamente por aqueles que não se conformam com o contrassenso hipócrita que aceita determinadas drogas na legalidade enquanto demoniza outras. A legalização e o controle, principalmente da maconha, aparecem nesses discursos como a panaceia para uma sociedade que está perdendo a alardeada guerra para as substancias psicoativas e onde as mais recentes estatísticas acusam um aumento generalizado no uso e, em alguns segmentos específicos, no abuso das drogas.    
A maconha é um sucesso de vendas globalizado e a “mão invisível” de Adam Smith que transforma tudo em mercadoria dentro da economia de mercado já percebeu isso. Mesmo com as contradições entre a realidade científica e a realidade cultural que confrontam interpretações antagônicas sobre os efeitos da erva, o fato é que um agricultor do Colorado (EUA) já fez as contas e percebeu, com água na boca, que o que pode render um hectare de maconha é cem vezes mais do que um hectare de alfafa. A indústria e o mercado se preparam para uma transformação sem volta que, por tesão econômico, irá enfrentar os pensamentos mais tradicionais e apoiar o liberação da marijuana.
Nessa arena de debates, exageros de todos os lados são verificados, tanto de proibicionistas que teimam em associar comportamentos inadequados e problemas de saúde superdimensionados ao uso de maconha, quanto da turma da liberação que por vezes chegam a interpretar a maconha como uma entidade espiritual superior capaz de solucionar todos os problemas da existência humana.
Mesmo causando dependência psicológica em um percentual relativamente pequeno de usuários, se comparada aos percentuais de dependência de outras drogas – como o álcool, o tabaco e a cocaína por exemplo – e com a possibilidade de agravamento de transtornos psicológicos pré existentes, a maconha ainda aparece como uma droga de baixo potencial de destruição e seu uso, em grande parte dos consumidores, não impede o desempenho dos diversos papéis sociais do indivíduo.   Entretanto, nem por isso deixa de ser droga e o fato de passar a ser admitida dentro de determinados arranjos sociais não pode servir de disfarce para ser entendida de outra maneira, com o risco de sairmos de um proibicionismo irracional e motivado por interesses políticos para uma idolatria fanática e fundamentalista.
A decisão pelo uso ou não de uma determinada substancia carrega em si uma escolha racional e pessoal do individuo, salvo naqueles casos em que a razão já foi derrotada pela dependência química e psicológica. E nesse sentido a moderação se torna um objetivo mais viável e positivo do que a abstinência total. Tanto na relação do homem com as drogas, quanto no próprio debate social que se apresenta sobre o assunto, o equilíbrio parece ser o caminho mais indicado.  




segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Meu Pai - Memórias da Imigração



Antonio Gomes Martins
Naquela manhã do dia 08 de junho de 1951, a vida transcorria calmamente no Conselho de Arouca, interior de um Portugal castigado pela crise econômica e pela falta de opções de trabalho. O governo ditatorial de Salazar, que havia chegado ao poder em 1932, tinha conseguido a proeza de não se envolver diretamente nos conflitos da Segunda Grande Guerra, que arrasaram a Europa, deixando um rastro macabro de morte e destruição.  No entanto, essa neutralidade teria um preço. Do alto de seu palanque o déspota, simpatizante dos movimentos fascistas, proferiu ao povo português a sentença:    “Livrem-vos da fome que eu vos livro da guerra”.

Assim como Hitler e Mussolini, Salazar vinha do povo com um discurso populista, mas ao contrário destes, tinha diploma universitário, havia lecionado na Universidade de Coimbra e seu projeto de um regime estável para Portugal, não tinha em seu bojo nenhuma ideologia revolucionária. Era um católico convicto que almejava um estado forte e fiel aos dogmas da igreja católica. Antes de tudo era um antiliberal que repudiava o socialismo, as lutas de classe, o sistema de partidos e o sufrágio universal. Apoiado no exército instaurou um estado nacional cristão em Portugal, calcado na família e nos valores católicos. Extremamente conservador, Salazar, teve o mérito de manter a paz social em um país atrasado nos quesitos técnicos e com uma economia incapaz de prover às novas gerações, esperanças de ascensão social e de dias melhores. Nesse cenário o Brasil acenava como o sonhado Eldorado. Como a terra promissora, celeiro de oportunidades de enriquecimento e receptivo a chegada de mão de obra estrangeira. Nos anos 50 houve um grande aquecimento nesse fluxo migratório, com os navios deixando o Porto e Lisboa apinhados de emigrantes que, incentivados pelo próprio governo Salazar, desembarcavam em terras brasileiras aos milhares na aventura do Novo Mundo. Geralmente viajava primeiro o chefe da família. O pai ia à frente, para sondar o terreno e plantar as bases econômicas que permitiriam a ida do resto da família. Mas também partiam primeiro os mais jovens e solteiros detentores da energia necessária para o trabalho pesado. Para poderem ser liberados pelo governo português e aceitos pelo governo brasileiro, precisavam ter alguém no Brasil que se responsabilizasse, através de uma Carta de Chamada, pela tutela do imigrante em seus primeiros anos na antiga colônia portuguesa. Caso algo de funesto acontecesse, como doença grave, falta de adaptação a nova terra ou impossibilidade de seu auto-sustento, essa pessoa teria que se encarregar das custas para a repatriação do cidadão português.
Naquele 08 de junho de 1951, quase ninguém reparou em Antonio, que deixava o prédio da Secretaria Notarial de Arouca, no edifício dos Paços Municipais. Ao seu lado estava seu filho varão mais velho, nessa época com 16 anos. Como todo bom primogênito também carregava o primeiro nome do pai. Nas mãos de Antonio – o filho -, estava um papel datilografado, com algumas assinaturas e com o polegar de seu pai aposto no verso. Nele podia-se ler:
 
Ficha de Migração
“...compareceu o Senhor Antonio de Oliveira Martins, casado, alfaiate, morador do lugar de Soutêlo, freguesia de Chave, deste concelho, pessoa cuja identidade reconheço pela abonação das testemunhas deste acto, minhas conhecidas. E por ele foi dito: Que, pelo presente instrumento, dá autorização e pleno consentimento ao seu filho Antonio Gomes Martins, solteiro, menor, de dezasseis anos de idade, sapateiro, convivente com ele outorgante no dito lugar de Soutêlo, para se auzentar do Continente da República, para a cidade do Rio de Janeiro, República dos Estados Unidos do Brasil, indo recomendado a pessoa de sua inteira confiança e que se obrigou a prestar-lhe alimentos e a promover a sua custa a sua repatriação, no caso de esta, por qualquer motivo se tornar necessária...”

Antonio – o pai – era casado com Margarida e tinham mais quatro filhos: Adélia – a mais velha de todos que havia entrado para o convento -, Abílio – que mais tarde também embarcaria para o Brasil -, Manoel e Sofia. A vida não era fácil na aldeia. Margarida criava algumas galinhas e vendia ovos para ajudar no orçamento familiar, enquanto o marido, embora alfaiate, também trabalhava na pequena quinta da família plantando e colhendo alguns legumes e verduras para sua própria subsistência. A aparência frágil de Margarida escondia um enorme coração. A tudo se calava e nada parecia abalar sua fé em Deus e sua paciência com as dificuldades da vida. Era uma mulher doce, agradável e resignada com sua sorte, que se dispunha a cuidar dos pequeninos da aldeia, quando os pais iam para o trabalho no campo. No início dos anos 80, quando o Pai Eterno a chamaria para o paraíso, uma cena iria emocionar todos daquele lugar. Aquelas pessoas que, quando crianças ela havia cuidado, rodeariam seu caixão tomadas pela dor, pela saudade e pela gratidão. O velho Antonio era um homem rude e de poucas palavras, mas reconhecidamente honesto e de boa índole. Fumava muito e também era adepto dos prazeres do vinho.

O pequeno Antonio cresceu vendo a dificuldade da família e sonhando com uma oportunidade de reverter aquele cenário. Aos 14 anos chegou a trabalhar como ajudante do sapateiro local que lhe ensinou o ofício, mas não era o suficiente. O espírito desbravador português gritava em seu peito e o oceano lhe desafiava. Ouvia as histórias dos conhecidos que haviam embarcado para o Brasil e tinham enriquecido. Vez por outra, um desses brasileiros – como eram chamados os retornados – chegava à aldeia ostentando sinais de prosperidade e opulência tão distantes da realidade da pequena Soutêlo. Não tardou o dia do pedido. Chegando perto do pai revelou seu desejo de migrar para o Brasil. No Rio de Janeiro estava um tio seu que poderia lhe enviar a carta de chamada e acolhê-lo nos primeiros tempos. O velho Antonio não disse nada de imediato. Pensou como iria arranjar o dinheiro para a passagem do filho. Já havia estado no Brasil e sabia que a vida nas Américas para um imigrante não era fácil. Conhecia também as ciladas e armadilhas que a vida fora da pátria natal apresentava. Por outro lado, sabia que pouco poderia fazer pelo filho em sua terra. Sem mostrar nenhuma emoção, apenas perguntou ao filho:

- É isso mesmo que tu queres?

A resposta afirmativa veio como uma flecha. Com a mãe chorando na porta de sua casa, que ele levaria mais de 30 anos para rever, Antonio se despediu dos irmãos e entrou com o pai em uma carrinha que o levou para a cidade do Porto, onde embarcaria no navio Salta. Ainda no cais, o pai lhe deu as últimas recomendações. O coração do pequeno Antonio batia cada vez mais forte a cada passo que ele dava na ponte que o levava a bordo. No alto do convés, uma última olhada para o seu Portugal antes de ser conduzido ao porão onde se localizavam os alojamentos da terceira classe. O garoto de 16 anos agora estava sozinho em sua aventura.

O Salta era o resultado de uma conversão feita em um porta-aviões britânico que havia sido utilizado na Segunda Guerra. Com o fim do conflito o navio havia sido devolvido pela Marinha Real Britânica aos EUA, ficando inativo até 1949, quando foi comprado e adaptado para o transporte de imigrantes pela companhia argentina Dodero Line. Tinha capacidade para 1.320 pessoas em instalações bastante modestas e compactas, cobrindo a linha Gênova-Buenos Aires, com escalas no Porto, Lisboa, Rio de Janeiro e Santos. Durante os 16 dias da longa viajem, o jovem Antonio andava pelo convés mirando a imensidão do mar, tentando controlar sua ansiedade que o fazia revisar o horizonte de hora em hora a procura de um sinal da terra prometida. Lembrava que o Tio Manuel, que o esperava no Rio de Janeiro, havia mandado o dinheiro para a passagem e se sentia extremamente grato e ávido para cumprir a obrigação de ressarcir a ele essa despesa a custo de muito trabalho. Era um jovem bonito e forte. Suportou bem as agruras da viajem. Não podia sequer imaginar a possibilidade de ficar doente. Na manhã do 16º dia de viajem, Antonio pulou da pequena cama de sua cabine e correu para a proa do navio. Lá finalmente pode avistar os contornos do famoso relevo do Rio de Janeiro, quando o Salta adentrou a Baía de Guanabara. Pela primeira vez sentiu medo e saudades. Mas a curiosidade afastou temporariamente esses sentimentos. Rapidamente reuniu seus parcos pertences na pequena mala e, com a documentação em mãos, se preparou para o desembarque no cais da Praça Mauá. Pisaria pela primeira vez em solo brasileiro. Um solo onde ele plantaria suas raízes, constituiria sua família e escreveria sua história a custo de muito suor, dissabores e alegrias, vitórias e derrotas.

Estava encostado na murada da embarcação aguardando o fim da manobra de atracação quando um companheiro de viagem se aproximou também tomado pela euforia e pelo alívio do fim da jornada. Enquanto conversavam animadamente, o homem puxou do bolso um maço de cigarros. Acendeu um e ofereceu outro a Antonio. O jovem português aceitou a oferta e acendeu seu primeiro cigarro. Enquanto baforava a fumaça resultante da combustão do tabaco, sentiu-se um homem absoluto. Adulto para fumar e livre para buscar o seu sustento naquele país que lhe acenava com um mar de possibilidades. Lembrou da mãe que certamente ralharia com ele se o visse fumando. Mas não se sentiu culpado. Estava longe demais para poder magoar aquele coração materno com qualquer atitude. Não sabia, mas estava iniciando um hábito que o acompanharia por mais de 40 anos.
Passaporte

Em terra, seu tio Manuel o esperava com um abraço de boas vindas. Era um bom homem de saúde frágil. Tomaram um táxi e partiram para a primeira habitação de Antonio no Brasil. O tio morava na Rua Barão de São Felix, em um dos vários sobrados de arquitetura portuguesa que formavam um corredor movimentado. Armazéns, garagens, restaurantes, frigoríficos, muitas pensões e algumas vilas, serviam de cenário para um ambiente que, às vezes, parecia ser um pedaço de Portugal no Rio de Janeiro, tamanha era a população de imigrantes lusos naquela região. A Barão de São Felix ficava por trás do famoso prédio do relógio da Central do Brasil, ao pé do Morro da Providência e paralela a Avenida Presidente Vargas. Era também uma região boêmia de grande agitação noturna. Alimentados pelo tráfego dos passageiros na gare da estação ferroviária Pedro II, os cabarés e gafieiras fervilhavam formando um eixo de pecado que rivalizava com a Lapa e a Praça Mauá. O jovem Antonio logo faria o reconhecimento desse novo habitat e se adaptaria com maestria à malandragem carioca, o que lhe renderia o apelido de Malandrote. Alcunha que lhe foi atribuída por um amigo também imigrante, em substituição ao Arrebita que havia trazido da infância na pequena aldeia portuguesa. Começou trabalhando como ajudante de sapateiro, mas logo passou para atendente de balcão em um restaurante na mesma rua em que morava. Em todo trabalho se destacava por sua determinação, seriedade, responsabilidade e disposição para a labuta. Acabou atraindo a admiração e amizade do português dono do estabelecimento que o promoveu a garçom. O cigarro já era companheiro constante e logo recebeu o reforço da cerveja, da bagaceira e do vinho, na tarefa de suportar a saudade de casa e de transitar pela face mundana do Rio. O álcool o acompanharia até o último de seus dias. Também não recusava uma boa briga, em uma época em que se brigava na mão ou, no máximo, com uma navalha. Chegou a ser salvo por uma carteira de motorista no bolso da camisa, quando uma chave de fenda inimiga já tomara o caminho de seu coração. Mostrava com orgulho a carteira de capa grossa, perfurada pelo artefato pontudo. Assim conseguiu pagar a passagem ao seu tio que morreria dois anos após a sua chegada. Numa terra distante e estranha, em meio a algumas xenofobias e hostilidades dos brasileiros, estava se saindo bem. Andava bem arrumado, com suas calças boca fina e relógios de ouro no bolso. Coisas que jamais poderia imaginar possuir em sua pequena aldeia. Depois de cinco anos de muito trabalho e agitação, podia dizer que já estava adaptado a nova pátria. Mas na hora em que entregava seu corpo cansado á cama da pensão onde morava, a solidão vinha lhe perturbar. E a saudade, tão facilmente afastada pela primeira vez no convés do Salta, teimava agora em não ir embora. Naquela noite do verão de 1956, fechou os olhos pensando no vinho com ovos e açúcar que a mãe lhe dava quando ficava doente e adormeceu.
(Trecho do livro "Sacudindo o Pó da Estrada" de Antonio Ernesto Martins)



quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Romance? Reportagem? Cinema? Simplesmente: José Louzeiro

Naquela segunda metade da década de 50, o sol escaldante do Rio de Janeiro ardia inclemente no firmamento da então capital do Brasil, enquanto um nordestino franzino caminhava pelo centro da cidade a caminho do trabalho. Suava em bicas. Não era para menos. A despeito do verão tropical que elevava a temperatura para perto dos 40º C, ele vestia três camisas por baixo do paletó. No entanto não era por maluquice que o fazia. Era a única estratégia encontrada para não ser roubado novamente na pensão de Botafogo onde havia alugado uma vaga, pouco depois de chegar ao Rio vindo do seu Maranhão.
Esse jovem era José Louzeiro e ainda não se podia prever que ele se transformaria em um dos maiores escritores do Brasil, pioneiro nacional do gênero romance-reportagem, autor de mais de 50 livros, 10 roteiros para longas metragens e três telenovelas para a TV.
Mas sua vocação para o perigo, seu interesse pela crônica policial, seu empenho na defesa das liberdades democráticas e sua fascinação pelo personagem delinquente já estavam presentes em sua alma quando ele chegou ao Rio de Janeiro em 1954. Veio fugindo do Maranhão para não morrer assassinado após a publicação de uma matéria sua no jornal O Combate onde denunciava um influente político por prática de tortura.
Filho de um pedreiro, Louzeiro conseguiu estudar em um colégio particular através de uma permuta que seu pai fez com a escola. Em troca dos reparos feitos no prédio o pequeno José ganhou bolsa de estudos e não demorou muito até que suas redações se destacassem nas aulas de português, chamando a atenção do diretor do colégio que o encaminhou para o poeta e membro da Academia Maranhense de Letras Corrêa da Silva. Este o recomendou ao chefe da redação do jornal O Imparcial. Assim Louzeiro ganhou seu primeiro salário como aprendiz de revisor.
Seu trabalho consistia basicamente em ler e dessa forma mergulhou na obra de grandes autores maranhenses através do suplemento de literatura do jornal. Após 2 anos na função de aprendiz tornou-se repórter policial. Sobre o motivo que o levou para esse campo de trabalho, declara:
“Sempre achei o delinquente fascinante. Tudo explode nele com muita intensidade, exaltação. Ele é capaz de praticar o crime e chorar quando é condenado. Mata sem motivo... Investigar isso era o que me atraía e ainda me atrai.”
No Rio de Janeiro, inicialmente foi trabalhar como datilógrafo em uma empresa de máquinas gráficas de segunda mão, pois achava que ali teria contato com pessoas ligadas às redações de jornais e seu plano deu certo. Conseguiu uma vaga de boy na Revista da Semana passando em seguida para redator publicitário. Daí em diante sua carreira como jornalista deslanchou e em 56 ele foi para o Jornal Luta Democrática. Trabalharia também no Diário Carioca, Última Hora e O Correio da Manhã, onde permaneceu por oito anos.
Em 58 vendeu sua máquina de escrever para custear despesas com a publicação de seu primeiro livro, Depois da Luta, pela Editora Simões. Durante a ditadura foi censurado e preso junto de outros companheiros do Correio da Manhã como Carlos Heitor Cony e Álvaro Mendes, entre outros. Perseguido pelos militares decidiu se esconder em Brasília.
“Aprendi, com os anos de reportagem policial que o melhor lugar para se esconder é ao lado da polícia. Por isso fui morar em Brasília, em um prédio na Asa Norte, no qual o síndico era coronel do exército. Mas ele me adorava! Até descobrir quem eu era. Tive que fugir novamente.”
Mudou-se então para a capital paulista e conseguiu um emprego na Folha de São Paulo onde fez uma matéria sobre uma chacina promovida pela polícia que jogou vários meninos considerados infratores do alto de um precipício.  Alguns sobreviveram e Louzeiro os entrevistou. Dessa extensa matéria, a censura autorizou a publicação de apenas 30 linhas.
De volta ao Rio escreve o livro Infância dos Mortos que conta os detalhes de sua investigação sobre esse caso e que serviu de argumento para o filme “Pixote – A lei do Mais Fraco” de Hector Babenco. A partir daí o trabalho de Louzeiro não para mais de se embrenhar pelo cinema nacional e outro filme, também de Babenco, alcança grande sucesso baseado em um livro de Louzeiro: “Lúcio Flávio – O Passageiro da Agonia”. O livro conta a história do bandido Lúcio Flávio Vilar Lyrio que, perseguido pelo grupo de extermínio Esquadrão da Morte em plena ditadura militar, é preso e morto a facadas na cadeia.
José Louzeiro
Crítico contundente das arbitrariedades do poder, José Louzeiro escreveu duas novelas de grande sucesso para a extinta TV Manchete; Corpo Santo e Guerra Sem Fim, nas quais os bastidores do crime e da corrupção estavam presentes de maneira real e ousada. Sua terceira novela, O Marajá, era baseada no governo de Fernando Collor de Melo e foi proibida de ir ao ar, apesar de nessa época a censura não existir mais no país. Desde então não conseguiu mais trabalho na TV.
Entre seus livros mais famosos também está Aracelli, Meu Amor que conta o estupro e assassinato de uma menina de 9 anos e denuncia o envolvimento de duas famílias poderosas do Espírito Santo, o que lhe rendeu mais algumas ameaças de morte. Escreveu também inúmeras biografias como a da cantora Elza Soares, da enfermeira baiana Ana Nery e a de Gregório Fortunato, braço direito de Getúlio Vargas.
Prestes há completar 82 anos, Louzeiro está debruçado sobre seu novo projeto de uma autobiografia romanceada, enquanto luta bravamente há mais de 8 anos contra a diabetes que lhe ocasionou algumas amputações como a da perna direita, de parte do pé esquerdo e de alguns dedos da mão. A partir de sua batalha contra a doença, Louzeiro escreveu em 2007 Diabetes: Inimigo Oculto.
Cena do Filme "Pixote- A Lei do Mais Fraco"
Além de sua produtiva militância a frente do sindicato dos escritores, Louzeiro também é responsável pela iniciação e capacitação de diversos roteiristas que hoje estão atuando no mercado audiovisual brasileiro e que passaram pelos bancos de suas turmas da oficina de roteiro que ele ministrou por vários anos. Eu sou um deles e, ouvindo as histórias e causos desse maranhense, aprendi a admirá-lo. Foi baseado em uma história sua vivida na redação da Ultima Hora que escrevi o roteiro de meu primeiro curta metragem.
Agora, passados tantos outros, me preparo para meu próximo filme que será um documentário sobre esse bravo brasileiro que não temeu transitar pelo submundo da bandidagem para de lá extrair histórias reais com odores de romance, não aceitou as versões oficiais, não se curvou diante da ditadura e da censura e agora, não se intimida diante da diabetes. Uma História que precisa ser contada - para novas e antigas gerações - em romance, em reportagem, em cinema.·.





segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Crack : Nada é tão ruim que não possa piorar.

Crack : Nada é tão ruim que não possa piorar.

Com o lançamento de meu livro “Sacudindo o Pó da Estrada” e de meu filme “O Brilho”, tenho participado de palestras, seminários e debates que abordam a questão das drogas, já que essas duas obras tratam através de linguagens distintas desse mesmo tema, tão presente na pauta de nossa sociedade. Passados quatro anos nos quais me dediquei a pesquisar esse assunto a partir da minha experiência pessoal no vício, o desafio de tentar entender o uso e o abuso de drogas ainda me fascina e me provoca diversas reflexões.
Desde os primórdios da civilização a humanidade se relaciona com algum tipo de droga ou alucinógeno, seja em suas atividades místicas ou religiosas, seja em rituais ou costumes tradicionais. A partir do movimento da contracultura dos anos 60, o consumo de drogas tomou ares revolucionários e de contestação, criando vínculo e afinidade com a juventude que possui em sua essência essas mesmas características.
No Brasil, nessa mesma época, imperava a ditadura militar que com seus aparelhos repressivos inibia qualquer tipo de rebeldia ou de transgressão. No entanto, a despeito das inúmeras políticas de prevenção e de combate às drogas, deflagradas no mundo inteiro, o consumo e a produção continuaram aumentando vertiginosamente dentro e fora de nosso país. No final dos anos 70, com a abertura política, a anistia, o movimento pelas diretas e os ares de liberdade que voltavam a soprar por nossas terras, cria-se um cenário propício para a ampliação da distribuição de entorpecentes e entra em cena de maneira mais abrangente uma droga que, até então, se mantinha elitizada nas classes mais altas e em alguns segmentos artísticos de vanguarda: a cocaína.
Insuflada no rastro da onda “disco” que varreu o mundo, a cocaína baixou de preço, aumentou sua oferta e ofereceu aos consumidores outro tipo de “viagem”. Uma droga urbana, “nervosa”, extremamente compulsiva e inquieta que, de modo devastador, alterou a rotina dos jovens consumidores e até mesmo a dos traficantes que a comercializavam, através de seus efeitos antissociais que inibem não só o sono ou a fome, mas também as relações de ternura e as conexões com a espiritualidade.
No início dos anos 80 os jovens entre 17 e 25 anos, entre eles eu, que tinham passado sua infância e adolescência, amordaçados pelo estado ditatorial, já podiam montar suas bandas de rock e seus grupos de teatro, externando suas opiniões e críticas a uma sociedade extremamente injusta e hierarquizada. Nesse cenário a cocaína conquista diversos adeptos com a falsa promessa de uma disposição inabalável e um vigor prazeroso e contínuo, que camuflam seu alto poder de criar dependência. Eu fui um dos cooptados.
No meio disso tudo, um enorme conflito se estabelece. Um conflito certamente inerente à natureza humana e travado desde os tempos mais remotos: o conflito do homem com ele mesmo. Potencializado no conflito do viciado, que vê rapidamente sua vontade própria se esvair e mergulha numa rotina de escravidão e degradação existencial. Como isso ocorre, como é feita essa escolha diariamente, como se comporta essa mente que percebe que está se prejudicando, mas ao mesmo tempo não consegue conceber sua vida sem a droga são perguntas que ainda hoje estimulam diversos estudos e pesquisas e que, muito recentemente, conseguiram inserir no debate da sociedade a ideia da “dependência química” como uma doença e não como uma deficiência de caráter. No entanto uma significativa parcela da população ainda encara o problema sobre a ótica tradicional que marginaliza e criminaliza o usuário.
Muitas outras questões ainda permanecem obscuras e suas complexidades se acentuaram com a chegada de novas drogas, as sintéticas e principalmente o crack, e com o amplo debate mundial em torno da descriminalização e da legalização das drogas hoje consideradas ilícitas. Debate esse movido pela constatação do total fracasso da chamada guerra contra as drogas, deflagrada no planeta sob o comando dos EUA.
No Brasil a partir dos anos 90, as crackolandias, inicialmente em São Paulo e depois no Rio de Janeiro, estampadas nos jornais e na TV revelam imagens fortes de grupos de viciados que se reúnem a luz do dia e a vista dos passantes para consumir essa droga derivada da cocaína. O crack oferece a mesmas sensações da cocaína através de sua combustão e da absorção através dos pulmões, potencializando sua ação e tornando o consumidor viciado em um curtíssimo espaço de tempo. Seu baixo preço também é fator primordial para a difusão da droga entre os pobres e o quadro de dependência dessa droga é de dificílima reversão. Para aqueles, como eu, que acreditavam ter conhecido na cocaína o estágio máximo da escravidão provocada pelas drogas, o crack chega para provar que nada é tão ruim que não possa piorar.
Atualmente o crack é considerado por muitos uma epidemia no Brasil e seus efeitos nefastos alcançam o interior dos estados, as pequenas cidades e as periferias com a mesma agilidade que vitimam também os condomínios de classe média alta das grandes capitais. A necessidade da droga que passa a pautar o comportamento do dependente leva-o a se desconectar de maneira radical de seus laços afetivos e psicossociais, infringindo perdas significativas. Rapidamente o usuário está incapacitado de cumprir seus papeis sociais e se sente impelido em frequentar esses grupos que se reúnem para o consumo diário e compulsivo da droga.
O crack expõe de maneira ostensiva aos olhos da sociedade contemporânea o antigo problema da dependência química e torna visíveis aqueles seres invisíveis aos olhos de uma população que ajuda a produzi-los.  Na lógica invertida dessa mesma sociedade é a droga e seus consumidores as causas dos problemas sociais. No entanto, percebemos ao nos aproximarmos dessa população de usuários, a repetição do padrão de histórias de ruptura de laços de solidariedade, de desintegração familiar, de segregação social e econômica, de incapacidade de inserção nos apelos consumistas e diversos outros fatos geradores que pré existem a droga e criam os espaços vazios propícios para a utilização da mesma como balsamo reparador de tantas amarguras. A partir da droga cria-se uma identidade e uma rede de vínculos recíprocos que parecem amenizar a vida desses cidadãos que foram barrados na festa do capital e do consumo e não foram tratados como cidadãos pelo estado e pela própria sociedade que os recrimina.
Os motivos que levam um indivíduo a se tornar dependente ou não de alguma substância ou comportamento são inúmeros e diversificados, variando em combinações de acordo com o sujeito, sua história de vida ou o ambiente que o cerca. Acredito que é hora de mergulharmos nesse desafio de entender e desvendar as causas e o mecanismo de construção de um dependente ao invés de simplesmente demonizarmos as drogas e colocarmos na conta dos dependentes os problemas sociais que nos afligem.
O patrocínio a pesquisas sérias no campo da neurociência que possam definitivamente esclarecer o impacto real de cada substancia no cérebro humano e suas consequências também são urgentes, para desconstruir mitos e tabus e pautar agendas qualificadas de discussão pública. Iniciativas humanizadoras como a implementada recentemente pelo programa “Operação de Braços Abertos” da prefeitura de São Paulo são louváveis, apesar da desastrosa e estranha ação do Denarc.
Como vemos, esse é um assunto que está longe de obter um consenso e os questionamentos e reflexões tanto na esfera pública como particular necessitam se despir de conceitos estabelecidos previamente para poder atacar o núcleo duro da questão.



sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

“A ONDA MALDITA” – Como Nasceu a Fluminense FM


“A ONDA MALDITA” – Como Nasceu a Fluminense FM

Éramos todos um pouco “estranhos”. Ou pelo menos era assim que nos viam nossos pais, nossos professores e aquele vizinho militar reacionário. Os cabelos compridos, a calça jeans surrada e a camisa Hang Ten, nem chamavam tanto a atenção como no passado, mas aqueles LPs sempre em baixo do braço espantavam muita gente. Principalmente quando nos trancávamos no quarto para tirar tudo o que as pequenas vitrolas podiam nos dar. Quando andávamos pelas ruas empunhando os clássicos de nossa coleção de vinis, fazíamos questão de colocar a capa do nosso favorito bem a vista, como um distintivo, um emblema que nos inseria na confraria fechada e incompreendida dos amantes do bom e velho rock’n roll. Era uma senha de identificação com nossos iguais que abria condições para novos relacionamentos que, invariavelmente, começavam com as impressões sobre a banda em destaque e se aprofundavam, chegando algumas até as discussões ferrenhas, porradarias, onde cada um defendia suas preferências e desdenhava as do outro. Religião não se discute. E o rock era nossa religião. Também olhávamos o mundo com estranheza e não compreendíamos a lógica selvagem da sociedade de consumo e as injustiças e incoerências do mundo a nossa volta. Só nos discos encontrávamos alento. Sentíamos uma saudade de um Woodstock onde nunca estivemos e uma grande melancolia com a perda prematura de nossos ídolos, ceifados pelo estilo rocker de vida e seus abusos. O rock era abusado. E enquanto o país caminhava para a tão sonhada democracia, nos orgulhávamos de nossos discos de um rock perseguido por tantas ditaduras e temido no seio das famílias mais conservadoras e caretas. Mas quando a agulha da vitrola cutucava insistentemente o selo central das bolachas, avisando que a audição havia chegado ao fim e saíamos de nossos quartos, nos sentíamos como viajantes perdidos em um deserto árido. Principalmente quando ligávamos o rádio e uma avalanche de mediocridade e repetições cansativas nos sufocava. Nessa hora, em que buscávamos nesse veículo tão poderoso e mágico algum som que saciasse nossa sede, também nos sentíamos “estranhos”. Ou estranho era o sistema que transforma tudo em produto, em dinheiro, e que havia nos expulsado das AMs e das FMs? Éramos órfãos da Federal e da Eldo Pop. Aguardávamos adoção. Um oásis onde pudéssemos ouvir nossa própria voz. Uma rádio estranha pelo amor de Deus!!!
Finalmente no início dos fantásticos anos 80, um boato varreu a cidade. Uma rádio rock existia. Em Niterói. 94,9 FM. Locutoras mulheres. Programação “estranha”. Como imaginar ouvir na rádio integralmente um pirata do Zeppelin gravado ao vivo? Ou um progressivo King Crimison com suas músicas de mais de 20 minutos, ou mesmo aquela faixa de nosso LP que achávamos que ninguém mais além de nós conhecia. Não estávamos mais sozinhos e não éramos tão estranhos assim.
É essa saga de resistência cultural no dial que nos conta Luiz Antonio Mello – criador da criatura junto de Samuel Wainer Filho – em seu delicioso e instigante livro “A Onda Maldita”, relançado agora pela Nitpress em comemoração pelos 30 anos da Fluminense FM. Com um texto descompromissado e irreverente como o rock deve ser e salpicado por revelações de bastidores, o livro oferece a nós, que vivemos a Fluminense, uma viagem de volta quase lisérgica aos porões do rock nacional que florescia pelas garagens do Brasil em 1982 e um reencontro emocionante com aquela rádio que marcou nossa juventude. Para os que não viveram a Fluminense, fica um testemunho de quem lutou contra a corrente para manter no ar uma rádio improvável que contrariou todos os prognósticos e escalou os primeiros lugares nas pesquisas de audiência da época. Um manifesto de que é possível sonhar, ousar e bagunçar o mercado com propostas de rádio sinceras e honestas.  
As limitações técnicas e financeiras não abateram aquela trupe da Maldita que com criatividade e com a sabedoria de alocar os diferentes talentos nos lugares certos, apostou na diversidade “pero no mucho” e na liberdade contida no lema que diz que todo tipo de música é valido desde que seja rock’n roll. Em tempos em que as rádios se orientavam para programações universais que, pela mediocridade, visavam atingir a todos nivelando o mercado por baixo em play listes de vinte títulos repetidos até a exaustão, a Fluminense – talvez sem saber – apostava na tal segmentação de mercado tão discutida hoje e apontada como a salvação das antigas e novas mídias.
Foi com certa emoção contida que voltei ano passado ao Circo Voador, para o lançamento do livro em noite festiva de tributo a Celso Blues Boy, figura recorrente da programação da Fluminense, tocado em fita K-7 quando o mago da guitarra ainda nem havia gravado seu primeiro LP. Bom rever Luiz Antonio Mello do alto de seus quase 1,90m, com os cabelos grisalhos como os meus e longe da magreza quase cadavérica que o acompanhou nos tempos de luta insana da Maldita. Melhor ainda passear por seu texto competente de jornalista experiente.
Luiz Antonio Mello
Fui ao Circo acompanhado de um velho amigo das históricas edições do Rock Voador, projeto produzido pelo furacão Maria Juçá. Ele me lembrou de que havia levado formigas em um vidro para serem trocadas no Arpoador por camisetas da banda Adan And The Ants em uma das folclóricas promoções da rádio que, inevitavelmente, acabavam em tumulto e polícia. Demonstração cabal do poder da rádio e de seu alcance junto à rapaziada do rock. Essa e muitas outras bagunças estão no livro. E ao lê-lo me senti outra vez incrivelmente “estranho” e feliz. Feliz em ter vivido um pouco dessa história e em poder agora tê-la perpetuada nessa obra obrigatória para quem quer entender uma pouco mais de rock, de sonho, de rádio e de luta. Com vocês, em 94,9 MHZ, FM Fluminense, a para sempre Maldita. E “estranha” como nós.



quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

SÓ FALTOU O TARKUS


SÓ FALTOU O TARKUS
No sábado passado (18/01) a Carl Palmer Band aterrissou na tenda montada ao lado do CCBB do Rio de Janeiro para um show dentro da programação da Mostra Internacional de Rock Progressivo. Oportunidade única para os aficionados desse estilo que, depois do auge nos anos 70, caiu no descrédito em tempos de música previsível, preguiçosa e de fácil digestão, com pouca – ou nenhuma - elaboração rítmica e conceitual.
Já nos arredores do evento era possível identificar os cabelos longos – dos que conseguiram consevá-los - e grisalhos que se esparramavam timidamente sobre as indefectíveis t shirts com estampas de grupos como Yes, Pink Floyd, Gentle Giant, Jethro Tull e outros jurássicos dando um clima de deja vu que só era contestado pela presença também significativa de jovens e até crianças que, provavelmente, acompanhavam seus pais, tios e avôs.  
Lotação esgotada, casa cheia e muita expectativa até que Carl Palmer subiu ao palco acompanhado dos jovens músicos Paul Bielatowicz (guitarra) e Simon Fitzpatrick (baixo). Em uma forma física invejável para um senhor prestes a completar 64 anos, Palmer desceu o braço e as diferenças etárias no palco e na plateia desapareceram como em passe de mágica.
O entrosamento da banda e o virtuosismo dos músicos que acompanhavam Palmer já puderam ser constatados nos primeiros acordes, mas não diminuíram a expectativa dos fãs do Emerson, Lake & Palmer que esperavam ver um revival do repertório da banda, um dos mais vitoriosos e marcantes grupos de rock progressivo de todos os tempos. Mas o Power trio montado por Palmer foi além.
Números como Knife Edge (ELP-1970) e Hoedown (Trilogy-1972) mostraram o franzino Paul Bielatowicz se agigantando em novos arranjos sem a pretensão de ocupar espaços deixados pela ausência do órgão Hammond e do sintetizador Moog de Keith Emerson que foram a marca registrada do som do ELP. E a opção de partir para um som mais pesado e original, embora ainda marcado pelas tradicionais convenções extraídas da música clássica, parece que foi a escolha certa. Foi possível confirmar isso a partir da execução primorosa do movimento O Fortuna da ópera Carmina Burana, que levantou os primeiros aplausos realmente enlouquecidos da plateia.
E as gratas surpresas continuaram com o solo do excepcional baixista Simon Fitzpatrick que contemplou o público com uma versão emocionante de Stairway to Heaven do Led. Falar sobre a bateria de Palmer é um desafio, pois nela a levada e o solo se confundem e nunca conseguimos adivinhar para onde o músico vai antes que ele chegue lá. E é exatamente isso que fez com que o show na tenda do CCBB se transformasse em um dos shows que vou guardar na prateleira dos melhores que já assisti. O show foi mais curto do que todos esperavam, mas o bis com Fanfare for the Common Man, com direito a solo apoteótico e irreverente de Mr. Palmer compensou. Nota 10 também para o som extremamente bem equalizado.
Para os que acreditam que o rock progressivo é um estilo superado e chato, com suas suítes lisérgicas intermináveis e estéreis, a Carl Palmer Band mostrou aos cariocas que diante de tanta mediocridade que reina na música mundial, uma progressive band pode fazer algo muito importante e necessário: surpreender-nos positivamente, com um virtuosismo que não é uma simples masturbação musical, mas que se comunica com o público e nos tira do conforto e do lugar comum. Showzaço onde Carl Palmer exibiu talento e simpatia, autografando pôsteres e CDs após a apresentação. Única resalva foi a ausência, apesar de inúmeros pedidos urrados pela plateia e por mim, de pelo menos um trecho do álbum Tarkus (1971), em minha opinião, o melhor do ELP.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A MULATA DO CINE VITÓRIA

A MULATA DO CINE VITÓRIA
Um conto de Antonio Ernesto

Sempre que ia para a casa de sua Tia Alice, pegava o ônibus da linha 184, Central-Laranjeiras, e ao passar pela Cinelândia, percebia as meninas de vida fácil flanando sem vergonhas da vida. Sabia que ofereciam seus corpos a quem tivesse dinheiro para pagar. Várias vezes pegou o ônibus decidido a descer no primeiro ponto após a Rua Evaristo da Veiga e contratar os serviços de uma daquelas profissionais. Uma vez chegou até a desembarcar, encorajado por sua libido que chacoalhava irrequieta no liquidificador dos hormônios púberes. Mas a timidez virgem, mal disfarçada por detrás de seu rosto castigado pela acne, o colocou de volta ao outro coletivo que vinha logo atrás, sem que conseguisse qualquer contato com aquelas prostitutas.
Uma em especial lhe chamava a atenção. Ficava sempre em frente ao extinto Cine Vitória, número 45 da Rua Senador Dantas, ao lado de uma floricultura. Era uma mulata de quadris descomunais e se destacava das outras meretrizes do lugar por estar em uma faixa etária um pouco mais próxima a dele. Devia contar uns 30 anos, enquanto as outras pareciam bem mais velhas e gastas. Afinal, 30 anos eram apenas um pouco mais do que o dobro da idade dele. Depois de várias tentativas e outras tantas desistências, em uma tarde morna de verão, encheu-se novamente de coragem, desceu do ônibus e foi em direção àquela mulata que bem poderia ser uma personagem do cartunista Lan.
Quando chegou perto da mulher, ela lhe atravessou a alma com um olhar tão assustador, que petrificou seu maxilar e todo o resto do seu corpo. Só conseguiu grunhir entre os dentes um cumprimento que na verdade já queria ser uma despedida. A mulata retribuiu.
- Oi bebê. E aí? Vamos?
Ele não sabia o que tinha sido pior: ser chamado de “bebê” ou a falta de rodeios com que aquela mulher havia entrado no assunto. Automaticamente fez com a cabeça que sim. Assim, mais de perto, pode ver que a mulata era realmente uma mulher bonita. Devia ter uma grande clientela, pensou. Ela convidou-o a segui-la e saiu andando na direção do Passeio Público, onde ficava a loja de departamentos Mesbla. No caminho informou o preço dos seus serviços. Após um cálculo rápido do que tinha nos bolsos ele concordou mecanicamente. Tentou travar algum diálogo durante a caminhada, que começava a durar uma eternidade, mas seus assuntos haviam desaparecido em um passe de mágica deixando em seu lugar apenas uma dose cavalar de ansiedade e um pavor de ser visto por alguém conhecido.
Um pouco antes do Teatro Serrador, ao lado de uma sapataria, aquela bunda imensa entrou em um corredor estreito que levava os sorrateiros para um prédio com várias salas comerciais. Na entrada a mulata foi cumprimentada pelo porteiro com um sorriso maroto que por pouco não fez o cliente estreante disparar uma correria envergonhada que só pararia na Praça Tiradentes, onde poderia pegar a condução para casa. Pensou consigo mesmo: “É agora ou nunca. Agora não tem mais volta.”
Chegou a se ofender mentalmente: “Deixa de ser covarde seu mariquinha, filhinho de mamãe.” Subiram dois lances de escada. Tentava acalmar a respiração. A mulher parou em frente a uma das várias portas do extenso corredor e tocou a campanhia.
Pensou: “É melhor voltar outro dia.” Mas antes que pudesse externar suas hesitações e inventar alguma desculpa para descer aqueles degraus por onde subira, a porta se abriu e revelou um velho de cabelos grisalhos, barba por fazer e com os dentes amarelados de nicotina. Sem disfarçar seu mau humor que parecia saltar de seu semblante, o velho afastou-se para que o casal entrasse e fechou a porta nas suas costas.
“Agora já era.”, pensou, enquanto vasculhava o lugar com seu olhar tímido procurando uma outra alternativa de fuga que não fosse a porta fechada pelo homem de aparência suja. A mulata o pegou pela mão e o levou a um corredor iluminado por uma luz fraca e vermelha onde haviam vários biombos separados por folhas finas de compensado, que escondiam suas intimidades através de cortinas também finas de um estampado de gosto duvidoso. De um desses biombos vinham gemidos de alguma trabalhadora daquela empresa. Ela parecia estar se esforçando em cumprir bem o seu dever, aumentar a produtividade, atingir as metas.
Achou que seu coração havia parado. Ou batia tão forte que não dava pra sentir o seu bater. Sua acompanhante afastou com a mão uma das cortinas revelando um pequeno quadrilátero com uma maca de hospital, forrada com um lençol puído que um dia devia ter sido branco. Não havia janela. Nem pular por uma era possível.
- Vai tirando a roupa, bebê, que eu já venho.
A mulher saiu e o frio que estava na sua barriga fugiu para sua espinha dorsal, voltou para a barriga e se alojou nos seus pés quando ele tirou os sapatos. Só de cuecas sentou-se na maca que era alta e que deixou suas pernas suspensas no ar. Lembrou-se das vezes em que tinha estado em um hospital e do pavor que tinha de injeção.
“Não”. Não podia pensar nisso agora. Tentou mentalizar os “catecismos” em quadrinhos eróticos de Carlos Zéfiro, que algumas vezes haviam caído em uma de suas mãos enquanto a outra ficava ocupada. Nada dava certo. Não conseguia se acalmar. Pensou em pedir ajuda a Deus. Mas lembrou de que aquilo não era assunto para ser levado às esferas divinas. Com certeza o Criador iria se aborrecer e aí é que nada daria certo mesmo. É bom lembrar que eram tempos em que não havia AIDS. Já ouvira falar em Camisa de Venus, sabia como era usada e que servia para evitar a gonorreia e a gravidez. Mas nunca tinha visto uma de perto.  “Palavra feia essa tal de gonorreia.”, pensou. “Talvez devesse ter trazido uma camisinha.” É isso. “Essa é uma boa desculpa: falo pra ela que vou comprar uma camisinha e não volto mais.” Ainda nem tinha arquitetado totalmente o seu plano de fuga, quando a mulata entrou no cubículo. Ela não estava sem roupas. Trazia apenas uma toalha, uma pequena bacia e uma garrafa de álcool nas mãos.
- Pode deitar bebê.
Se esticou na maca como se fosse um defunto no necrotério.
- Você tá nervoso?
A mulata fez essa pergunta de resposta óbvia enquanto levava as cuecas do garoto até os joelhos, revelando suas partes intimas e todo o seu desconforto com aquele momento.
- Vamos dar uma limpezinha nele?
Não dava pra responder nada. “Ele” a essa altura do campeonato já havia sumido em meio à vegetação do seu púbis imaculado. Havia abandonado o campo de batalha como um desertor covarde deixando-o desarmado diante da fera sanguinária. Foi quando as primeiras gotas do álcool banharam “ele”, gelando tudo o que, por milagre, pudesse ainda não estar gelado. Deu um pulo da maca como um moribundo reanimado por um desfibrilador. Enquanto se recompunha e vestia suas calças recorreu ao seu dom de bom contador de histórias. Disse que uma antiga namorada havia feito macumba para ele.  A mulata se mostrou compreensiva e até recomendou um pai de santo, seu conhecido, que poderia desfazer o trabalho. Mas a compreensão não foi suficiente para não cobrar o cachê acertado previamente.
Entregou as cédulas e desceu aquelas escadas arrasado e aliviado ao mesmo tempo. Encontrou novamente o sorriso malicioso do porteiro na saída, mas dessa vez retribuiu na mesma moeda como quem, triunfante, havia desfrutado plenamente de tudo que aquele corpo de aluguel podia oferecer. Aquela satisfação mentirosa, jogada na cara do porteiro sugeria refestelo. Foi um gol de honra marcado aos 45 do segundo tempo. Mas não evitou a sua derrota por goleada.
Alguns meses depois a mulata desapareceu para sempre do seu tradicional ponto. Nunca mais a viu por lá. Sempre a procurava através do vidro da janela do 184, Central-Laranjeiras. Mas ela sumiu sem chance de revanche. Talvez tivesse mudado de empresa ou se casado com um cliente rico e apaixonado.


Caminhando para a casa de sua Tia Alice deixou escapar pelo canto de seus lábios um pedaço daquele mesmo sorriso que trocara com o porteiro. Imaginou sua vergonha se essa história vazasse para alguns de seus amigos. Finalmente, depois de muito sofrimento, conseguiu fazer aquele fiasco parecer engraçado, amenizado pela ação do tempo e protegido no segredo da sua memória.